Ano Novo, homotransfobia velha… Dois casos emblemáticos de homotransfobia destes primeiros dias do ano deixam claro que 2020 será o ano de luta para que a decisão do STF que reconheceu a homotransfobia como crime de racismo saia do papel e ajude na melhoria concreta da vida das pessoas LGBTI+. Segue nota do GADvS sobre os casos em questão.

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O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, inscrito no CNPJ sob o n.º 17.309.463/0001-32, que tem como finalidades institucionais a promoção dos direitos da população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e o enfrentamento da lesbofobia, gayfobia, bifobia e transfobia, com sede na Rua da Abolição, n.º 167, São Paulo/SP, CEP 01319-030, vem REPUDIAR dois recentes atos homotransfóbicos ocorridos já nos quatro primeiros dias de 2020: contra mulher trans Lanna Helen, em um caso, o ativista gay Eliseu Neto e seu companheiro (Ygor Higino), em outro, bem como se SOLIDARIZAR com as vítimas.

Lanna foi impedida de utilizar o banheiro feminino e expulsa do Shopping Pátio Maceió por protestar contra dita transfobia na Praça de Alimentação. Ou seja, foi discriminada três vezes: duas em seu direito de personalidade ao respeito à sua identidade de gênero autopercebida, obviamente desrespeitado ao não se permitir que usasse o banheiro feminino, bem como ao ser identificada pejorativamente como “macho” (sic), depois em seu direito de liberdade de expressão e protesto.[1] Lembre-se que, ao lado da homofobia, a transfobia foi reconhecida como crime de racismo pelo STF (ADO 26 e MI 4733), não cabendo nenhuma dúvida de que o impedimento a uma mulher transexual ou uma travesti usar o banheiro feminino constitui criminosa discriminação por identidade de gênero, punida pelo art. 20 da Lei 7.716/89. Não há razão para presumir que elas fariam algo distinto de suas meras necessidades fisiológicas no banheiro, até porque princípio geral de Direito aduz que a boa-fé se presume, com a má-fé devendo ser provada – e não permitir mulheres transexuais e travestis usarem o banheiro feminino a pretexto de “proteger mulheres cisgênero” (sic) implica em flagrante e descabida presunção de má-fé. Por outro lado, não há dúvida de que a fala de segurança, pela qual “Ela se considera mulher, mas é um macho. É um macho” (sic) constitui também outra criminosa discriminação por identidade de gênero, também punida pelo art. 20 da Lei 7.716/89, ao desrespeitar a identidade de gênero autopercebida da mulher transexual ou da travesti (direito de identidade de gênero este reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na OC 24/17, e pelo STF, na ADI 4275 e no RE 670.422/RS).

Eliseu e seu companheiro foram expulsos por motorista do aplicativo 99 táxi apenas por trocarem beijos, algo que não gera tal reação quando praticado por casais heteroafetivos. Para piorar, quando Eliseu foi tentar tirar foto da placa do carro, o motorista teve o despautério de chamar um carro de polícia para que Eliseu fosse punido, gerando a inacreditável agressão de Eliseu pelo policial em questão.[2] O caso se torna emblemático porque Eliseu foi quem articulou, junto ao então PPS (hoje Cidadania), a outorga de procuração ao advogado Paulo Iotti, Diretor-Presidente do GADvS, para mover no STF a segunda ação pedindo o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo (ADO 26 – a primeira havia sido movida em nome da ABGLT – MI 4733), tendo ajudado muito o signatário em diversas articulações ao longo do processo do PPS/Cidadania, levando parlamentares e advogado do partido a reuniões com o Min. Celso de Mello, por exemplo. Reconhecida a homofobia como crime de racismo pelo STF, não há dúvida que expulsar um casal gay de um veículo de transporte pelo simples fato de manifestar seu afeto por beijos amplamente admitidos ou tolerados a casais heteroafetivos configura criminosa discriminação por orientação sexual, punida pelo art. 20 da Lei 7.716/89. Eliseu divulgou que o aplicativo respondeu a sua denúncia, aduzindo que excluiu o motorista em questão de sua rede de prestadores de serviço.[3]

Cabe lembrar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a homofobia e a transfobia como crimes de racismo (ADO 26 e MI 4733), na acepção político-social e não biológica do termo (logo, sem “analogia” nem atividade “legislativa”).[4] Neste julgamento, afirmou-se também que a homotransfobia constitui o motivo torpe, de sorte que a agravante genérica do artigo 61, II, “a”, deve incidir quando a homotransfobia seja a motivação de outros crimes.

Como se vê, 2020 será um ano de lutas para efetivação da decisão do STF, no uso do Direito Penal como mecanismo de proteção de direitos humanos, para o fim de se reprimir as opressões motivadas na orientação sexual e identidade de gênero das minorias sexuais e de gênero (população LGBTI+). Cabendo lembrar que qualquer pessoa racional e de boa-fé tem obrigação de saber que, tendo o STF reconhecido a homotransfobia como crime de racismo, ele obviamente também a reconheceu como injúria racial, sendo manifestamente irracional entendimento em sentido contrário, donde violador das interpretações lógica e teleológica da hermenêutica jurídica e, ainda, do princípio da razoabilidade. Qualquer noção de boa-fé objetiva, enquanto padrão de conduta imponível à pessoa mediana (no coloquial: “se não sabia, tinha obrigação de saber”) demanda por tal conclusão. Mas será outra das lutas de 2020, a superação das resistências já constatadas (normalmente, por pessoas que discordam da decisão do STF) da consideração da homotransfobia “também” como injúria racial (se é racismo, é simplesmente indefensável afirmar que não seria, também, injúria racial).

Fica, assim, a solidariedade do GADvS às citadas vítimas de homotransfobia, bem como o seu repúdio a tais práticas homotransfóbicas. Esperamos que as autoridades públicas punam na forma da lei e de acordo com o devido processo legal tais práticas homotransfóbicas.

São Paulo, 05 de janeiro de 2020.

GADvS
Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero
pp. Paulo iotti (Diretor-Presidente)

[1] Cf. <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/01/04/impedida-de-usar-banheiro-mulher-trans-denuncia-shopping-de-maceio.htm>. Acesso: 05.01.2020.

[2] Cf. <https://revistaforum.com.br/lgbt/ativista-lgbt-relata-agressoes-feitas-por-pm-em-recife/?fbclid=IwAR03uQtFDmvbCO-hWbWeA5hSRFZzQVmD2Qe8u3eGIIc2c3sMmLS1v5OFJ7Q> e <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/ativista-lgbt-e-vitima-de-homofobia/?fbclid=IwAR0BRDOPf5UI0ITr6mbneFQ2lEGcctrzGqfNwqBihTDY7bOnzHKcCXrWNS4> Para relato do namorado de Eliseu, vide: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2619657521463002&set=a.441029495992493&type=3&theater>. Acessos: 05.01.2020.

[3] Cf. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=3218755571474770&set=pb.100000210757486.-2207520000..&type=3&theater>. Acesso: 05.01.2020.

[4] Cf. VECCHIATTI, Paulo Roberto iotti. STF não legislou nem fez analogia ao reconhecer homofobia como racismo. In: Revista Consultor Jurídico, 19.08.2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-19/paulo-iotti-stf-nao-legislou-equipararhomofobia-racismo>. Acesso: 05.01.2020.