O GADvS?—?Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, associação civil sem fins lucrativos, inscrito no CNPJ sob n.º 17.309.463/0001–32, que tem como missão o ativismo por intermédio do Direito para garantia dos direitos fundamentais da população LGBTTI e o enfrentamento aguerrido da homofobia e da transfobia, vem, através desta nota pública, parabenizar e agradecer as Ministras e os Ministros do Supremo Tribunal Federal pela histórica decisão de reconhecer o direito à mudança (adequação) do prenome e gênero das pessoas transgênero (travestis e transexuais), ou seja, de todas aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer?, independente de cirurgia de redesignação sexual, laudos médicos e ação judicial.

A deliberação se deu no julgamento da ADI 4275, que discutia a exigibilidade de intervenção cirúrgica para a retificação dos documentos registrais?—?questão que foi superada por unanimidade. Contra a exigência de laudos, tivemos o emblemático placar de 10×1, vencido, apenas, o Ministro Marco Aurélio. Desta forma, a divergência se concentrou sobre a necessidade das ações judiciais, na qual o voto de divergência do Ministro Edson Fachin foi determinante e mobilizou os próximos votos, garantindo o caráter emancipador que viria a ser consolidado. Destaca-se o trecho: “Sendo, pois, constitutivos da dignidade humana, ‘o reconhecimento da identidade de ge?nero pelo Estado e? de vital importa?ncia para garantir o gozo pleno dos direitos humanos das pessoas trans, incluindo a protec?a?o contra a viole?ncia, a tortura e maus tratos, o direito a? sau?de, a? educac?a?o, ao emprego, a? vive?ncia, ao acesso a seguridade social, assim como o direito a? liberdade de expressa?o e de associac?a?o’, como tambe?m registrou a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por isso, ‘o Estado deve assegurar que os indivi?duos de todas as orientac?o?es sexuais e identidades de ge?nero possam viver com a mesma dignidade e o mesmo respeito que te?m todas as pessoas’”.

Ainda segundo o Ministro Fachin, que redigirá o acórdão, o STF adotou as seguintes premissas: Primeira: O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. Segunda: A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Terceira: A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”. Ou seja, afigura-[s]e inviável e completamente atentatório aos princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade física e da autonomia da vontade, condicionar o exercício do legítimo direito à identidade à realização de um procedimento cirúrgico ou de qualquer outro meio de se atestar a identidade de uma pessoa. Evidencia-se, assim, com olhar solidário e empático sobre o outro, que inadmitir a alteração do gênero no assento de registro civil é atitude absolutamente violadora de sua dignidade e de sua liberdade de ser, na medida em que não reconhece sua identidade sexual, negando-lhe o pleno exercício de sua afirmação pública. É nessa direção que aponta a Corte Interamericana. Conforme consta de sua opinião consultiva, já referida nesta manifestação, os Estados têm a possibilidade de estabelecer e decidir sobre o procedimento mais adequado de conformidade com as características próprias de cada contexto e de seu direito interno, os trâmites e procedimentos para a mudança de nome, adequação de imagem e retificação da referência ao sexo ou ao gênero, em todos os registros e em todos os documento de identidade para que estejam conformes à identidade de gênero AUTOPERCEBIDAS, independentemente de sua natureza jurisdicional ou materialmente administrativa, desde que cumpram com os seguintes requisitos: “a) devem estar dirigidos à adequação integral da identidade de gênero auto-percebida; b) devem estar baseados unicamente no consentimento livre e informado do solicitante sem que se exijam requisitos como certificações médicas ou psicológicas ou outros que possam resultar irrazoáveis ou patologizantes; c) devem ser confidenciais e os documentos não podem fazer remissão às eventuais alterações; d) devem ser expeditos, e na medida do possível, devem tender à gratuidade; e e) não devem exigir a realização de operações cirúrgicas ou hormonais” (par. 160)” (grifos nossos).

Ademais, segundo o Ministro Celso de Mello, sempre paradigmático na afirmação da função contramajoritária da jurisdição constitucional, com grande foco no direito fundamental à felicidade, implícito ao princípio da dignidade da pessoa humana (entre outros), bem como citando, ainda, como o Ministro Edson Fachin, os Princípios de Yogyakarta, sobre a aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos nas questões relativas à orientação sexual e à identidade de gênero das pessoas, afirmou o direito fundamental à retificação do registro civil, de acordo unicamente com a identidade de gênero autopercebida da pessoa transgênero, senão vejamos:

“O direito à autodeterminação do próprio gênero, enquanto expressão do princípio do livre desenvolvimento da personalidade, qualifica-se como poder fundamental da pessoa transgênero, impregnado de natureza constitucional, e traduz, iniludivelmente, em sua expressão concreta, um essencial direito humano cuja realidade deve ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. É por essa razão que, entre os Princípios de YOGYAKARTA – que exprimem postulados sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero –, há um, o Princípio n. 3, que proclama o direito titularizado por qualquer pessoa “de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei. As pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida. A orientação sexual e a identidade de gênero AUTODEFINIDAS por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade. […] Esta decisão – que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que inviabilizam a busca da felicidade por parte de transgêneros vítimas de inaceitável tratamento discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns, mas, sim, de toda a coletividade social. […] É preciso insistir, desse modo, na asserção de que as pessoas têm o direito fundamental ao reconhecimento de sua identidade de gênero e de serem tratadas em consonância com essa mesma AUTOPERCEPÇÃO por elas revelada. […] O exercício desse direito básico, que pode importar em modificação da aparência ou em alteração das funções corporais do transgênero, também legitima a possibilidade de retificação dos assentamentos registrais, com a consequente mudança do prenome e da imagem registrados em sua documentação pessoal, sempre que tais elementos de identificação não coincidirem com a identidade de gênero, tal como AUTOPERCEBIDA pelo próprio indivíduo” (grifos nossos).

Cabe ressaltar que outras demandas da comunidade trans no país, como o acesso ao banheiro correspondente à sua identidade de gênero e a questão do “nome social”, também ficam definitivamente resolvidas com a retificação dos documentos registrais, evidenciando o efeito multiplicador da sentença – como bem avaliou a advogada Maria Berenice Dias.

A decisão na forma como foi realizada somente foi possível com a abertura do Tribunal em escutar as orientações dos especialistas sobre a temática e a voz daqueles que, de fato, serão atingidos por estas políticas. Salienta-se a influência dos amici curiae – sendo o GADvS um deles -, bem como da sustentação oral realizada pela advogada trans Gisele Alessandra Schmidt e Silva e pelo Diretor-Presidente do GADvS, Paulo Iotti.

Ademais, a fundamentação amplamente baseada nos princípios gerais de direito, nos Tratados Internacionais em que o Brasil é signatário e na jurisprudência internacional – como a Ppinião Consultiva  n° 24/2017, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e os Princípios de Yogyakarta – normativa pioneira em estabelecer os direitos e deveres dos Estados em relação à população LGBTI.

“Ninguém te dá quem és”, já escreveu Fernando Pessoa, nessa linha o Ministro Roberto Barroso disse: “a história deve avançar, todos devemos ter a capacidade de reconhecer e respeitar quem é diferente da gente.” Ao final a presidente Carmen Lucia, bem ponderou, nesse mesmo magistério: “Ninguém é livre se o outro diz o que você é” e “Somos todos iguais em dignidade, mas com direitos diferentes no nosso modo de ser.”

Ontem os códigos, hoje a Constituição”, bem lecionou Paulo Bonavides. A decisão da ADI 4275 é mais um avanço a Constituição. É uma vitória da mobilização realizada pelos movimentos sociais e pelos ativistas, da comunidade acadêmica e do reconhecimento do direito das pessoas LGBTI no plano internacional e nacional. É a vitória da Grécia sobre Roma.

 

GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero
Por Bruno Ferreira, Carlos Augusto Avila e Paulo Iotti