O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, associação civil sem fins lucrativos, inscrito no CNPJ sob n.º 17.309.463/0001-32, que tem como missão o ativismo por intermédio do Direito para garantia dos direitos da população LGBTI e enfrentamento da homofobia e da transfobia, considerando o conteúdo da “Carta Aberta ao COI (Comitê Olímpico Internacional)” redigida e divulgada pela atleta Ana Paula Henkel, vem a público defender o direito das mulheres transexuais em geral (e da atleta Tiffany em particular) serem reconhecidas como mulheres e poderem, assim, participar de competições esportivas profissionais entre mulheres, nos seguintes termos:

A atleta Ana Paula declara em sua carta aberta que “a verdade mais óbvia e respeitada por todos os envolvidos no esporte é a diferença biológica entre homens e mulheres” e que por esse motivo que são estabelecidas categorias competitivas distintas para homens e mulheres. Afirma também que durante seus 24 anos de dedicação ao esporte foi submetida à diversos exames antidoping e testes, que precisou provar cientificamente que é uma mulher e que o parâmetro utilizado para isso foram os níveis de testosterona, o que inclusive já acarretou o banimento de diversas companheiras do mundo esportivo. Alega por fim que “este nível de rigor foi totalmente abandonado para acomodar transexuais”.

Sobre esta questão, o GADvS esclarece que as atletas transexuais precisam passar pelos mesmos testes e exames que suas companheiras cisgênero passam a fim de participar das competições esportivas. Isso porque, para que seja possível competir na categoria feminina, segundo as diretrizes do Comitê Olímpico Internacional, as mulheres trans precisam passar por, ao menos, 12 meses de terapia hormonal, mantendo neste período os níveis de testosterona abaixo do 10 nmol/L – o similar à uma mulher cisgênero. Além disso, existem outros requisitos que devem ser seguidos apenas por mulheres trans, como a identificação da atleta ao gênero feminino , que durante quatro anos não pode ser alterada “por razões esportivas”.

Dessa forma, destacamos, é uma falácia pautada em pura ignorância afirmar que não há de se falar em abandono do rigor para “acomodar” pessoas trans, já que são essas pessoas que precisam “se acomodar” aos parâmetros determinados para que possam competir. Ressaltamos que a participação de pessoas trans nas competições esportivas não é assunto intrinsecamente novo, embora urgente e atual. Desde 2003, o “Consenso de Estocolmo sobre Mudança de Sexo nos Esportes”[1] (sic) já permitia que pessoas transexuais competissem, embora seus termos sejam considerados, atualmente, imprecisos. Isso porque, àquele tempo, era exigida, além da terapia hormonal, a cirurgia de redesignação sexual. Essa exigência era puramente baseada no senso comum que envolve a questão transexual, já que os requisitos esportivos não se baseavam mais em questões anatômicas, mas hormonais. Assim como após os anos 60 houve uma revisão dos parâmetros de avaliação esportiva, proibindo que as atletas tivessem que se expor de forma vexatória para se adequarem à categoria feminina[2], o Consenso de 2003 foi revisado para que seus termos sejam baseados em fatores realmente relevantes e determinados por especialistas, chegando aos supracitados requisitos atuais.

Quanto à preocupação de uma possível vantagem às pessoas trans decorrente dos “efeitos do hormônio masculino na já finalizada construção de ossos, tecidos, órgãos e músculos ao longo de décadas”, acentuamos que devemos analisar essa questão sob uma abordagem científica, já que, caso contrário, corremos o risco de contaminar nossa análise com senso comum e ideias preconcebidas. Ao passo que não há estudos que embasem a ilação, pautada em senso comum, de que mulheres transexuais teriam alguma “vantagem” sobre mulheres cisgênero em competições esportivas, após o tratamento hormonal pelo qual precisam passar para poderem destas (competições) participar.

É o que declarou Regis Rezende, Professor de Educação Física e Fisiologista formado pela PUC/GO, Pós-Graduado e Especialista em Voleibol pela Universidade Gama Filho/RJ (CREF 004202-G/GO) que complementou que “o que essas pessoas [críticas de Tiffany] não conseguem separar cientificamente é que Tiffany não é um homem operado, ela é uma mulher transexual que precisa manter um nível de hormônio que possibilite sua participação. […] não se pode usar bibliografia ou artigos científicos de pessoas cisgênero para avaliar pessoas transexuais. A ausência de homeostase no corpo de uma mulher transexual já derruba várias teses de favorecimento biológico”. Ao passo que, sobre “a questão óssea, ter uma densidade óssea maior que o de mulheres cisgênero, no voleibol, também não é indicativo de vantagem. Nenhum estudo provou até o momento que essa característica possa influenciar na performance no voleibol, na verdade em alguns esportes, que se beneficiam pelo menor  centro de gravidade, pode ser uma desvantagem para atletas transexuais terem peso e densidade óssea superior a de outras atletas cisgênero. Quando se faz terapia de correção hormonal, além de todo o desequilíbrio causado no corpo e suas funções, existe também a significativa perda de massa muscular. Entre as funções do sistema muscular destaca-se ser responsável pela manutenção do sistema esquelético e produção de movimentos. Com menos massa muscular e tendo que suportar ossos mais pesados, como o corpo de uma mulher transexual poderá manter a mesma performance? O desgaste será maior, a queima de energia será maior, o tempo de recuperação será maior. Pode-se perceber as deficiências de Tiffany, como a velocidade [e] o tempo de recuperação. É necessário cautela não só daqueles que possuem acesso e alcance midiático, mas também dos profissionais da área que consigam ver com olhos questionadores e com vontade de somar à pesquisa ao invés de formularem decisões baseadas no que é sabido pelo senso comum. Estudos existem muitos, disponibilidade e interesse nem tanto”[3] (grifos nossos).

Em outro texto, em coautoria com Adriano Passos, Graduado em Educação Física, Pós-Graduado em Fisiologia do Exercício,Avaliação Morfofuncional, Atividade Física Adaptada e Saúde, além de Mestre e Doutorando em Sociologia, sob o sugestivo título “As Mentiras que te Contaram sobre o caso Tiffany”[4], os autores desenvolvem os pontos supra citados e refutam, ainda, a crítica (de senso comum) pautada na maior pontuação de Tiffany em números absolutos, destacando-se, com base nos números concretos, que Tiffany recebe muito mais bolas que outras atletas, donde chamam a atenção para o fato de que Existe diferença entre EFICIÊNCIA e EFICÁCIA. Em eficácia, a Tiffany não figuraria entre as 10 melhores atletas da competição, dado o elevado número de bolas que recebeu e a quantidade de pontos convertidos. Em eficiência, ela tem a maior média de pontos por SET (também não a faz maior pontuadora da competição como as notícias tendem a dizer) e essa afirmação não a coloca como a melhor jogadora do torneio, aliás 46% de aproveitamento no ataque não a coloca entre as 5 melhores atacantes da competição (a jogadora líder nas estatísticas de ataque de acordo com os dados da CBV é Walewska Oliveira com 60% de aproveitamento no ataque) , ou seja, a atleta não é um ‘ponto fora da curva’, quando se percebe os números de ações de suas companheiras de equipe” (grifos nossos). O que se destaca apenas para mostrar que as críticas a Tiffany são pautadas em senso comum atécnico e não em uma análise especializada sequer sobre seus números.

Como se vê, nesta esfera, o que sabemos é que este tratamento hormonal pelo qual precisam passar as mulheres trans para competir produz um decréscimo significativo da massa muscular e da densidade óssea do indivíduo, o que, de acordo com a cientista Joana Harper em seu estudo “Race Times for Transgender Atheletes”[5], pode fazer com que mulheres trans corram até 12% mais devagar que antes.

Certamente, a terapia hormonal não altera fatores como a altura da pessoa ou o peso, mas, além disso não significar vantagem em todos os esportes, também precisamos considerar que mulheres cisgênero que possuem altura superior à média por motivos genéticos também não são afastadas da competição. Isso porque vantagens ou desvantagens biológicas sempre existirão entre atletas e o papel do COI é nivelar aquelas que são realmente determinantes para manter um determinado padrão de justiça e equidade entre seus competidores. Logo, resta claro que não há porque se falar em uma “evidente vantagem em atletas transexuais”.

Dito isso, existem desvantagens em ser uma atleta transexual que suas companheiras cis não precisam enfrentar: o constante questionamento sobre suas habilidades, o desrespeito à sua identidade de gênero e a discriminação por parte da torcida e da equipe.

O GADvS aproveita para salientar que o combate ao preconceito contra transexuais (e pessoas LGBTI em geral) é mais que uma discussão justa e pertinente, é um direito humano e dever de todos – inclusive do Comitê, que tem a preservação da dignidade humana e a promoção da inclusão no esporte como seus fundamentos[6]. Desta forma, cabe lembrar que decisões como a do COI não consistem em medidas irrefletidas e apressadas, mas na justa garantia do princípio da igualdade e da não-discriminação.

Ana Paula, celebramos sua contribuição para o esporte nacional e reconhecemos fortemente o esporte enquanto atividade historicamente empoderadora para mulheres. Entretanto, lutamos para que estas conquistas abranjam todas as pessoas – independente delas serem cis ou trans – e para que histórias como a sua inspirem indiscriminadamente ainda mais mulheres!

Por todo o exposto, o GADvS celebra a decisão da CBV – Confederação Brasileira de Vôlei, de ater-se a critérios científicos do COI – Comitê Olímpico Internacional e não em ilações pautadas em puro senso comum transfóbico (ou, no mínimo, ignorante), parabenizando a CBV por não ceder às pressões recebidas em sentido contrário: “preservar os direitos, cumprir a legislação e os regulamentos são pilares da entidade”, declarou a entidade[7].

GADvS
Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero

Paulo Iotti (Diretor-Presidente) e Bruno Ferreira

 

[1] Cf. <https://www.pdga.com/files/StockholmConsensus_0.pdf> (último acesso em 07.02.2018),

[2] Cf. <https://www.nytimes.com/2016/07/03/magazine/the-humiliating-practice-of-sex-testing-female-athletes.html> (último acesso em 07.02.2018).

[3] Entrevista concedida a Lince Esportes em 03.02.2018. Disponível em: <https://www.facebook.com/linceassessoria/photos/a.741101255929406.1073741855.300458566660346/1810069362365918/?type=3&theater> (último acesso em 07.02.2018).

[4] Cf. <https://www.linkedin.com/pulse/mentiras-que-te-contaram-sobre-presença-de-tiffany-na-maira-reis/?published=t> (último acesso em 07.02.2018).

[5] Cf. <http://jrci.cgpublisher.com/product/pub.301/prod.4> (último acesso em 07.02.2018).,

[6] Cf. <https://stillmed.olympic.org/media/Document%20Library/OlympicOrg/General/EN-Olympic-Charter.pdf#_ga=2.130519307.507483112.1517499448-153499912.1517499448> (último acesso em 07.02.2018).

[7] Cf. <http://esportes.estadao.com.br/blogs/bruno-voloch/cbv-defende-tifanny-e-mantem-posicao-preservar-os-direitos-e-cumprir-a-legislacao/> (acesso em 07.02.2018).