Em 16.02.2017, o GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, e a ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, oficiaram o Núcleo Especializado em Diversidade e da Igualdade Racial, da Defensoria Pública de São Paulo, responsável pela ação de indenização por danos morais coletivos, movida em face de Levy Fidelix (processo n.º 1098711-29.2014.8.26.0100). Em síntese, defenderam como absolutamente equivocada a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando acolheu as apelações de Fidelix e seu partido, para julgarem improcedente a ação. Discordando do Tribunal, GADvS e ABGLT defenderam que a fala de Fidelix configurou efetivo discurso de ódio que, como tal, não pode ser tolerado. O Tribunal não negou que discursos de ódio precisem ser reprimidos, mas entendeu que as falas de Fidelix não se configurariam como tais – é neste ponto que GADvS e ABGLT discordam e solicitam, assim, à Defensoria que recorra das decisão.

As entidades informaram que pretendem se habilitar no processo, como amici curiae (“amigas da Corte”), mas que não o fazem neste momento para não atrasar o andamento do processo. Irão fazê-lo tão logo o processo chegue ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, e, posteriormente, ao Supremo Tribunal Federal.

Segue a íntegra do citado ofício:

São Paulo, 16 de fevereiro de 2017.

Ofício GADvS n.º 01/2017

 

Para
Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial[1]
, da Defensoria Pública de São Paulo
A/C
: Dr. Erik Saddi Arnesen – Coordenador
E-mail
: <earnesen@defensoria.sp.def.br>

 

O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) apartidária, inscrita no CNPJ sob o n.º 17.309.463/0001-32, que tem como finalidades institucionais a promoção dos direitos da população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e o enfrentamento da homofobia, da lesbofobia, da bifobia e da transfobia, com sede na Rua da Abolição, n.º 167, São Paulo/SP, CEP 01319-030, entidade eleita como conselheira LGBT da cidade de São Paulo e de atuação em âmbito nacional, neste ato representada por seu diretor-presidente (doc. anexo), e ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, pessoa jurídica de Direito Privado, inscrita no CNPJ/MF sob o n.º 00.442.235/0001-33, com sede na Avenida Marechal Floriano Peixoto, n.º 366, Cj. 43, Edifício Monte Carlo, Centro, Curitiba/PR, CEP n.º 80010-130, aqui representada por seu advogado signatário (doc. anexo), vêm, respeitosamente, à presença de Vossas Senhorias, expor e requerer o quanto segue:

Como é do conhecimento de Vossas Senhorias, nos autos do processo n.º 1098711-29.2014.8.26.0100, lamentavelmente, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento a recursos de apelação, para julgar improcedente a ação. Trata-se da ação civil pública, brilhantemente movida pela Defensoria Pública de São Paulo, em face do Sr. Levy Fidelix, pleiteando indenização por danos morais coletivos contra a população LGBT, em razão do verdadeiro discurso de ódio por ele proferido contra ela, em debate presidencial, de primeiro turno, das eleições de 2014.

Sobre o tema, e ratificando todas as belíssimas razões da petição inicial e das contrarrazões de apelação, apresentadas pela Defensoria Pública, servimo-nos do presente para solicitar a interposição dos recursos judiciais cabíveis, inclusive embargos de declaração, contra o V. Acórdão do E. TJSP. Pede-se venia para explicitar a visão das organizações signatárias sobre o tema.

Entendem GADvS e ABGLT que o V. Acórdão do E. TJSP teve como foco questão alheia ao objeto da ação. Com efeito, a decisão discute longamente frase que, embora tenha se tornado a “mais famosa” da (nefasta) fala de Fidelix, não constituiu o fundamento do pleito de dano moral coletivo em questão.

Com efeito, e isso parece claro já desde a petição inicial, o movimento LGBTI em geral e a Defensoria Pública em particular não pleitearam a condenação de Fidelix com base nas frases “dois iguais não fazem filho” e “aparelho excretor não reproduz” (sic). Essa frase denota, apenas (e com a maxima venia), o simplismo da ideia de Fidelix, que aparentemente ignora, inclusive, que técnicas de reprodução assistida permitem, com tranquilidade, que casais homoafetivos reproduzam, o que, de qualquer forma, não justifica a discriminação contra pessoas LGBTI (temas, aliás, destacados pela decisão do E. TJSP). Mas os fundamentos da ação foram outros, os quais não foram analisados pelo V. Acórdão, razão pela qual, para fins de prequestionamento, entendemos necessária a oposição de embargos de declaração, nos seguintes termos:

Roga-se venia para transcrever nota do GADvS[2], publicada na época da sentença condenatória, de primeira instância, que expõe os temas centrais do litígio, que não foram apreciados pelo E. TJSP:

[…] Da mesma forma, cabe lamentar as manifestações que criticaram a condenação, especialmente as que afirmam que Fidelix teria sido condenado por ter dito que “aparelho excretor não reproduz”. Não obstante o desrespeito desta frase no contexto, como se casais homoafetivos fossem merecedores de menor respeito e consideração do Estado pelo fato de não reproduzirem (casais heteroafetivos estéreis, que não reproduzem, não são discriminados, como a coerência exigiria se esse argumento fosse realmente levado a sério – o que seria inconstitucional em ambos os casos), não foi isso que gerou a indignação do Movimento LGBT. Como destacado pelo GADvS na citada nota de repúdio, o que caracterizou o dano moral coletivo foi Fidelix aprofundar o absurdo ofensivo à dignidade das pessoas LGBT ao falar de “pedofilia” no contexto de uma pergunta sobre violência contra pessoas LGBT, em uma clara insinuação de relação entre homossexualidade e pedofilia; falar que “a maioria” precisa não ter medo de “enfrentar essa minoria”, em uma irresponsabilidade ímpar, para dizer o mínimo, que realmente tem o potencial grave de incitar a violência contra LGBTs; patologizar as pessoas LGBT ao falar em tratamento “psicológico e afetivo” (SIC) pelo SUS e ainda defender a segregação social de pessoas LGBT, ao falar que elas precisariam ser tratadas “bem longe da gente” (SIC). Isso sem falar no verdadeiro terrorismo argumentativo de defender absurdamente que o reconhecimento da união homoafetiva como família com igualdade de direitos relativamente à união heteroafetiva significaria uma “necessária” redução pela metade da população brasileira (de 200 milhões para 100 milhões…) fala absurda em patamares incalculáveis, como se heterossexuais fossem “deixar de sê-lo”, como se isso fosse possível, pelo simples fato de o Estado Brasileiro se limitar reconhecer a união homoafetiva… algo simplesmente indefensável e ofensivo à inteligência alheia, mas igualmente um inegável terrorismo argumentativo…” (grifos nossos)

Ou seja, o dano moral coletivo consiste na equiparação das identidades LGBT à pedofilia, na patologização das identidades LGBT em geral, na afirmação de necessidade da maioria heterossexual cisgênera “enfrentar” a minoria LGBT e, por fim, na incitação à segregação, claramente decorrente do desejo que pessoas LGBT fiquem “bem longe” (sic) da maioria heterossexual cisgênera. Isso tudo no contexto de uma pergunta sobre como enfrentar a violência contra a população LGBT, algo que não poderia ter sido desconsiderado pelo E. TJSP.

Sobre o tema, o V. Acórdão do E. TJSP se manifestou, apenas, sobre a questão da incitação à segregação, ao citar a expressão “bem longe”, donde somente o tema da incitação à segregação parece-nos prequestionado. Nesse sentido, quanto às demais questões, aqui julgadas relevantes, considerando que (especialmente) o Superior Tribunal de Justiça sempre teve entendimentos muito restritivos acerca do prequestionamento, entende-se salutar a apresentação prévia de embargos de declaração, para tornar inconteste o prequestionamento dos demais temas. Pois, mesmo que o E. TJSP simplesmente rejeite os embargos, sem analisar os temas em questão, felizmente o art. 1.025 do CPC/2015[3], positivando o entendimento progressista do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, afirma que as matérias respectivas serão consideradas implicitamente prequestionadas (por incorporados ao acórdão recorrido), caso STJ ou STF concorde com a existência (neste caso) das omissões apontadas.

Ou seja, entende-se ser necessária a apresentação de embargos declaratórios porque o E. TJSP negou a existência de discurso de ódio no caso, mas o fez sem analisar todas as frases de Fidelix, nos termos supra. Isso porque, embora aparentemente (e felizmente) não tenha afirmado que discursos de ódio estariam protegidos pela liberdade de expressão (isso restou expresso na declaração de voto concordante), entendeu que a fala de Fidelix não se caracterizaria como tal – posição esta, do V. Acórdão, a ser refutada, em futuros recursos especial e extraordinário[4], para distinta qualificação jurídica de fato[5].

Assim, entende-se, aqui, que é necessário prequestionar as falas de Fidelix não analisadas pelo V. Acórdão do E. TJSP, para não haver dúvida da possibilidade de questionamento do tema, perante as instâncias extraordinárias (STJ e STF) – para, em suma, divergir do mérito da decisão em questão, para defender a efetiva ilicitude, caracterizadora de dano moral coletivo à população LGBT, negada pelo Tribunal Paulista (essa parece ser a questão essencial – enquanto o E. TJSP considerou as falas de Fidelix lícitas, embora lamentáveis e pautadas por ignorância, a Defensoria Pública, o GADvS e ABGLT consideraram a fala ilícita, ou seja, não incluída no âmbito de proteção do direito fundamental à liberdade de expressão).

Por fim, informa-se que GADvS e ABGLT, futuramente, pretendem se habilitar no processo, como amici curiae. Todavia, não o fazem neste momento, para não atrasar o andamento do processo, mas pretendem fazê-lo, tão logo o processo chegue a Brasília (STJ/STF). Por isso, rogam para que a Defensoria Pública recorra desta (lamentável) decisão do E. TJSP.

Ante o exposto, GADvS e ABGLT vêm, respeitosamente, solicitar a Vossas Senhorias que apresentem, inicialmente, embargos de declaração para, ato contínuo, apresentarem recursos especial e extraordinário, contra o V. Acórdão do E. TJSP sobre o tema.

Sem mais para o momento, permanecendo à disposição para quaisquer esclarecimentos que se tornem necessários, subscrevemo-nos.

 

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GADvS e ABGLT
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

Diretor-Presidente do GADvS
Advogado da ABGLT (neste caso)
OAB/SP n.º 242.668

[1] Cf. <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=3322> (acesso em 16.02.2017).

[2] Cf. <http://www.gadvs.com.br/?p=1953> (acesso em 16.02.2017).

[3] Art. 1.025. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.

[4] Pois, ao contrário do que entendeu o E. TJSP, entendem GADvS e ABGLT que houve efetiva incitação ao preconceito, à discriminação e mesmo à violência contra pessoas LGBT neste caso, ao passo que, também contrariamente ao ali afirmado, Fidelix teve um aumento significativo dos votos que normalmente conseguia, embora o número total ainda tenha sido ínfimo, para fins de eleições presidenciais (matéria do YAHOO atestou, em 07.10.2014, que “Levy Fidelix teve votação recorde após discurso homofóbico” – cf. <https://br.noticias.yahoo.com/levy-fidelix-tem-vota%C3%A7%C3%A3o-recorde-ap%C3%B3s-discurso-homof%C3%B3bico-235111319.html> – acesso em 16.02.2017. Atestou, tal matéria, que em 2010 o candidato teve 57.960 votos, ao passo que, em 2014, teve 446.878). Ademais, cabe reiterar, o V. Acórdão focou-se na oposição do candidato e seu partido à união homoafetiva, quando o contexto específico do debate era uma pergunta sobre violência contra pessoas LGBT – o que torna, no mínimo, irresponsável e detentora de culpa grave (senão de dolo eventual) a fala de Fidelix, consoante explicado no corpo do texto deste ofício.

[5] A jurisprudência do STJ afirma que não viola proibição de revolvimento de aspectos fático-probatórios (Súmula 7) a revaloração jurídica de fatos constantes do quadro fático do acórdão recorrido. Nesse sentido, v.g.: STJ, AgRg no REsp n.º 1.582.638/MG, 05ª Turma, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 19.12.2016, segundo o qual “O Superior Tribunal de Justiça tem reiterados julgados de que a revaloração jurídica dos fatos incontroversos descritos no acórdão recorrido  não  afronta  o  entendimento  contido  na Súmula 7 desta Corte,   segundo   o   qual   é   vedado   o   reexame   da  matéria fático-probatória dos autos (Precedentes)” (g.n).