O STJ e o Casamento Civil Homoafetivo

Participação em um Julgamento Histórico

Paulo Roberto Iotti Vecchiatti1

No dia 25/10/11, o Superior Tribunal de Justiça, por quatro votos a um, decidiu que duas pessoas do mesmo sexo têm o direito de se casar, a despeito da omissão da legislação vigente no Brasil acerca do tema. A decisão foi proferida no julgamento do Recurso Especial n.º 1.183.348/RS.

A decisão foi histórica. A despeito de alguns juízes e algumas juízas terem reconhecido o direito de casais homoafetivos se casarem civilmente após a também histórica decisão do Supremo Tribunal Federal do dia 05/05/2011 (ADPF n.º 132 e ADIn n.º 4277), a decisão aqui comentada é de suma relevância por ter sido proferida pelo segundo tribunal em hierarquia no Brasil, que inclusive tem a competência para uniformizar a jurisprudência dos Tribunais brasileiros em matéria de Direito das Famílias (entre outras).

Tive o privilégio de poder fazer a sustentação oral em favor do casal de gaúchas perante o Superior Tribunal de Justiça. Considerando a enorme importância de tal decisão para os direitos civis dos cidadãos homossexuais, no que tange aos casais homoafetivos, o amigo militante Eduardo Piza tomou a iniciativa de pedir ao Dr. Gustavo Bernardes, que propôs a ação em favor do casal de gaúchas, bem como interpôs o recurso de apelação e o recurso especial em favor do casal, fazer um relato do histórico do caso, relato este publicado em seu blog2, no site do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual3 e no site do Grupo SOMOS4, que patrocinou a ação desde seu início. Quando soube de minha participação no julgamento, pediu-me o mesmo. É o que passo a fazer.

Na terça-feira, dia 18/10/11, um dia normal de trabalho, consultei o site do Superior Tribunal de Justiça para uma pesquisa de jurisprudência e, para minha surpresa, a notícia principal do site informava que o Superior Tribunal de Justiça iria decidir se duas pessoas do mesmo sexo poderiam se casar na quinta-feira daquela semana, dia 20/10/115. A notícia me causou enorme surpresa, pois não tinha conhecimento que havia uma ação de um casal homoafetivo pleiteando pelo direito ao casamento civil aguardando julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Instintivamente, tive a vontade de participar deste julgamento, realizando parte da sustentação oral – tinha absoluta certeza de que o advogado do casal, quem quer que fosse, iria fazer a sustentação oral, dada a importância do caso, donde, por ter a certeza de que eu tinha condição de colaborar a favor do casal por ser um estudioso do chamado Direito Homoafetivo há anos (com livro e artigos publicados acerca da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos à luz do ordenamento jurídico-constitucional vigente, a despeito de sua omissão acerca do tema6). Contudo, para meu desespero, a notícia do site do STJ não informava o número do recurso especial em questão, o que em tese inviabilizaria a minha pretensão de verificar o andamento do processo e descobrir o nome do advogado do casal para, ato contínuo, tentar descobrir seu telefone pela internet e contatá-lo para perguntar se eu poderia dividir o tempo de quinze minutos de sua sustentação oral, com cinco minutos que fossem.

Mas, para minha sorte, a modernidade do mundo contemporâneo nos disponibiliza a fantástica ferramenta de buscas da internet chamada google. Assim, fiz uma pesquisa com algumas palavras-chave para tentar descobrir o número do processo (algo como “casamento civil pessoas mesmo sexo rio grande sul”), sendo que, dentre os diversos resultados de busca, havia um blog que comentava a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que havia negado o direito de um casal de mulheres acessarem o casamento civil – transcrevia a ementa do mesmo, criticava o posicionamento reacionário ali esposado e, para minha enorme felicidade, informava o número do recurso especial pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça, interposto pelo casal contra dita decisão do Tribunal Gaúcho – REsp n.º 1.183.348/RS7.

Com dito número em mãos, pude consultar o print do processo no site do STJ, o qual, como sabem advogados, informa os números do processo perante as instâncias inferiores. Tendo, agora, em mãos o número da apelação perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pude localizar o inteiro teor do acórdão (para poder estudar a decisão e saber como combatê-la). Ao ler o print do processo no site do Tribunal Gaúcho, qual não foi a minha surpresa ao ler o nome do advogado do casal – Gustavo Bernardes! Gustavo é um conhecido militante LGBT gaúcho, o qual eu já tinha o prazer de conhecer e cujo telefone, portanto, eu já tinha (como não tinha comigo naquele momento por ter mudado de aparelho celular, um amigo me forneceu o telefone de Gustavo para que eu pudesse ligar imediatamente). Assim, liguei para Gustavo e informei meu desejo de dividir o tempo de sustentação oral com ele, oferecendo-me para tanto, momento no qual Gustavo informou que, como estava trabalhando em Brasília, teve que renunciar ao processo em favor de outro advogado do Grupo SOMOS: Dr. Bernardo Dall’Olmo de Amorim. Neste momento, pedi o telefone de Bernardo e Gustavo o forneceu. Liguei para Bernardo, expliquei minha pretensão (mencionando meu livro, minha sustentação oral perante o STF no caso da união estável homoafetiva e o fato de ter sido citado no voto respectivo do Ministro Celso de Mello para ele ver que eu realmente poderia colaborar a favor do caso) e perguntei se seria possível ele me fornecer um substabelecimento com a finalidade específica de fazer a sustentação oral (embora tenha ressaltado que teria enorme prazer em me disponibilizar a ajudá-lo no restante do processo, em eventual recurso extraordinário em caso de derrota ou contrarrazões de recurso em caso de vitória e recurso do Ministério Público): ele disse que precisava confirmar com o SOMOS, mas que a seu ver não haveria problema e que, inclusive, eu poderia realizar a sustentação oral como um todo (falar os quinze minutos). Deixei meu telefone e, pouco depois, Bernardo me retornou dizendo que o SOMOS havia concordado e que eu poderia realizar a sustentação oral, o que me deixou muito feliz: sabia que era um julgamento histórico e sabia que poderia colaborar, fornecendo bases sólidas para o STJ decidir a favor do direito de casais homoafetivos ao casamento civil. No final do dia, recebi uma ligação do casal, que pediu para eu encontrá-las pouco antes do julgamento, para me conhecerem e descobrirem quem era este advogado que apareceu do nada e pediu para representá-las (pedido absolutamente natural, pois eu mesmo ressaltei a elas ser extremamente inusitado esse meu pedido de participação no julgamento e que era absolutamente normal elas, bem como seu advogado, terem esse estranhamento inicial), e combinamos de nos encontrar quando eu chegasse a Brasília.

Passado esse momento de descoberta do número do processo, contato com os advogados do casal e de autorização para fazer a sustentação oral8, bem como obtida autorização de meu chefe para eu me ausentar na quinta-feira e em parte da sexta-feira ante a viagem de ida a Brasília na quinta e volta na sexta pela manhã por eu não saber precisar quanto tempo o julgamento poderia durar (e, sabemos, se todos os votos forem longos, sua leitura pode tomar muitas horas), passei a me preparar para a sustentação oral (valendo citar a agradável conversa com o querido Felipe Oliva, o qual me deu carinhosas e valiosas palavras de apoio, por sua confiança em minha capacidade de colaborar com o caso). Como alguns amigos sabem, relativamente à minha sustentação oral perante o Supremo Tribunal Federal no caso da união estável homoafetiva (ADPF n.º 132 e da ADIn n.º 4277), preparei-me para esta sustentação oral por aproximadamente dois anos (!), o que pode parecer estranho, mas decorre do fato de eu ter protocolado minha manifestação de amicus curiae9 e despachado com o relator, Ministro Ayres Britto, em meados de 2009, e desde então ter ensaiado mentalmente a sustentação oral (além de, no ano de 2011, ter ensaiado uma sustentação oral de cinco minutos por saber que havia muitos amici curiae favoráveis à causa e que o tempo total de trinta minutos teria que ser dividido entre todos). Contudo, se tive dois anos para me preparar para a sustentação oral do STF, tinha menos de dois dias para me preparar para a sustentação oral do STJ, com o complicador de que o teor da fala não poderia ser o mesmo: lamentavelmente, muitos ministros do STJ entendem que este tribunal não poderia interpretar normas constitucionais em suas decisões (!), na medida em que isto seria competência exclusiva do STF, cabendo ao STJ apenas a interpretação da lei, consoante a literalidade das normas constitucionais respectivas. Discordo dessa posição, por ser inerente ao constitucionalismo contemporâneo (conhecido como neoconstitucionalismo) a irradiação das normas constitucionais na interpretação das leis, o que significa que as leis devem ser interpretadas sempre em consonância com as normas constitucionais, sendo um verdadeiro contrassenso essa posição de diversos ministros do STJ. De qualquer forma, por saber disso, passei a me preparar para uma sustentação oral puramente civilista, ou seja, atendo-me a argumentos da dogmática do Direito Civil e não do Direito Constitucional, justamente para poder dialogar com este entendimento do STJ, que imaginei que tinha grandes chances de preponderar neste julgamento. Como mestre em Direito Constitucional e, portanto, constitucionalista, isto me incomodou, mas como sempre atuei no contencioso cível e ter, portanto, facilidade com Direito Civil, a atuação puramente civilista não me representava um problema.

Fato curioso foi o de que eu passei a noite do dia 18/10/11 para o dia 19/10/11 em claro elaborando um amicus curiae que iria apresentar em favor de duas associações LGBTs de São Paulo, mas isso acabou não sendo possível por não ter conseguido falar com seu presidente no dia 19/10/11. De qualquer forma, serviu para auxiliar na preparação mental para a sustentação oral.

Voltemos. Só consegui voo para Brasília para o dia do julgamento, quinta-feira, por volta das oito da manhã. Cheguei cedo ao aeroporto de Guarulhos (aproximadamente duas horas antes do voo) e fiquei ensaiando mentalmente a sustentação oral, sempre com um olho no relógio, para conseguir falar tudo o que queria no tempo de quinze minutos. Perdi a conta de quantas vezes ensaiei, pois o ideal seria ter pouco mais de vinte minutos para falar com relativa calma tudo o que eu queria – para quem considera isso um exagero, o relator, Ministro Luis Felipe Salomão, levou aproximadamente uma hora para ler o seu voto, após minha sustentação oral. Enfim. Com a sustentação oral pronta, embora sempre ensaiando mentalmente, entrei no avião e fui a Brasília, quando aproveitei para estudar um pouco alguns livros jurídicos para refutar argumentos do acórdão gaúcho.

Quando cheguei a Brasília, tomei um táxi e fui à casa do casal recorrente, conforme combinamos dois dias antes. As duas foram extremamente calorosas e carinhosas em sua recepção, me ofereceram um delicioso café-da-manhã e me perguntaram o que eu pretendia sustentar para o STJ e perspectivas para o que aconteceria após a decisão do Tribunal – fosse ela favorável ou contrária a elas, ou seja, autorizasse ele ou não o casamento (civil) delas. Após aproximadamente uma hora de agradável conversa, pedi licença e me dirigi ao STJ para protocolar a petição de juntada de substabelecimento e ir entrando no clima do julgamento (ficando na sala do julgamento).

Cheguei ao STJ e, com a petição de juntada de substabelecimento em mãos, a mostrei aos assessores presentes na sessão de julgamento e a protocolei no setor de protocolos (procedimento comum para advogados que juntam substabelecimento no dia do julgamento) e passei a aguardar minha vez de falar. O casal recorrente e algumas amigas chegaram depois, pouco antes do início da sessão de julgamentos (que se iniciava às 14h00). Havia apenas três processos na pauta e fui informado que o nosso seria o terceiro. Chegada minha vez, dirigi-me à tribuna e fiz minha sustentação oral a favor do casal.

Em apertada síntese, afirmei o seguinte10: a ausência de artigo de lei/enunciado normativo proibitivo ao casamento civil homoafetivo caracteriza possibilidade jurídica do pedido respectivo11 por força da lacuna normativa que decorre desta ausência de proibição, lacuna esta passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia12, decorrentes do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do artigo 126 do Código de Processo Civil, o que deve ser feito porque o casamento civil visa regulamentar a família conjugal, que se forma pelo amor familiar, ou seja, pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura13, consoante evolução sociológica da família conjugal14 e pela interpretação teleológica dos artigos 1.511 e 1.723 do Código Civil15, consoante, inclusive, reconhecido pelo STF – pois a decisão do Supremo reconheceu a união homoafetiva como família conjugal consoante o conceito ontológico de família16 para, com base nisto, a ela estender o regime jurídico da união estável, por analogia, ante a absoluta igualdade devida a ela relativamente à união estável heteroafetiva17. Assim, destaquei da tribuna que caso não se considere inconstitucional a teoria da inexistência do ato jurídico por sua flagrante afronta ao disposto no art. 5º, inc. II, da CF/8818e sua ilicitude por visar criar hipóteses de proibições de casamentos civis fora das taxativas hipóteses do artigo 1.521 do Código Civil, tem-se que concluir que a “condição de existência” do casamento civil e da união estável é a família conjugal, formada pelo amor familiar, não a diversidade de sexos, donde juridicamente possível o pedido de casamento civil homoafetivo pela ausência de proibição normativa ao mesmo e procedente ele no mérito, ante a união homoafetivo formar uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido e, portanto, o suporte fático dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, ante a ausência de motivação válida ante a isonomia que justifique a discriminação da família conjugal homoafetiva relativamente à família conjugal heteroafetiva.

A sustentação oral foi muito elogiada pelos ministros – muito além dos elogios protocolares, o que me deixou muito feliz: um novo reconhecimento da validade de meus estudos acerca do tema em todos estes anos (desde 2003, na faculdade). Sensação análoga à felicidade que tive ao ser citado na fala e no voto escrito do Ministro Celso de Mello no julgamento da união estável homoafetiva (ADPF n.º 132 e ADIn n.º 4277). O relator, Ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que forneci diversas bases para o deferimento do pedido; o Ministro Raul Araújo elogiou a qualidade de meus argumentos, ressaltando o caráter eclético de minha fala (provavelmente pela parte em que falei que, caso não concordassem comigo sobre a inconstitucionalidade e ilegalidade da tradicional teoria da inexistência do ato jurídico, que o reconhecimento da família conjugal como elemento valorativamente protegido pelo regime jurídico do casamento civil tornava a família conjugal, formada pelo amor familiar, seria a condição de existência do casamento civil, não a diversidade de sexos); a Ministra Isabel Galloti e o Ministro Antonio Carlos Ferreira também elogiaram a qualidade da sustentação oral, a primeira inclusive ressaltando que mencionei da tribuna algo que ela trabalhou em seu voto, a saber, que o casamento civil torna a vida do casal menos burocrática que a vida dos companheiros em união estável, ante estes terem que provar sua união estável por uma série de documentos, eventualmente tendo que renovar parte deles (como a declaração notarial de união estável), e o casal casado nada ter que provar mediante apresentação de sua certidão de casamento civil, que faz prova absoluta de que o casal forma uma família conjugal para todos os fins legais.

Os quatro ministros citados votaram a favor do casamento civil homoafetivo: o voto do relator foi simplesmente fantástico e paradigmático: surpreendeu-me ao adotar uma exegese essencialmente constitucionalista para a interpretação do Código Civil (algo que, ao que me constava, normalmente era feito apenas pela Ministra Nancy Andrighi), afirmando que entende que o STJ não pode interpretar a lei sem considerar a Constituição, pois isto tiraria importante proteção dos jurisdicionados. Fiquei internamente em êxtase, pois ao longo de aproximadamente uma hora o relator disse praticamente tudo que eu não pude dizer, tanto por falta de tempo quanto por minha opção de adotar uma exegese civilista em minha sustentação oral: tratou, basicamente, da igualdade jurídica, da dignidade da pessoa humana, da laicidade estatal/separação entre Estado e Igreja, da função contramajoritária do Poder Judiciário na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos (com consequente submissão da própria maioria às disposições legais e constitucionais vigentes, consoante a própria noção do Estado de Direito) e da possibilidade jurídica do pedido ante a ausência de proibição normativa ao casamento civil homoafetivo, consoante jurisprudência consolidada do STJ acerca do tema (citando os mesmos precedentes que eu citei da tribuna, relativos à união estável homoafetiva: REsp n.º 820.475/RJ e 827.962/RS).

O segundo a votar, Ministro Raul Araújo, mostrou que eu estava certo em minha abordagem: ficou bastante tempo afirmando que ao STJ caberia interpretar apenas a lei, [supostamente] não tendo competência para interpretar normas constitucionais, donde normalmente não poderia o Tribunal decidir o caso por ele ser eminentemente constitucional, justificando isso no argumento de que nenhuma interpretação discordante daquela que eventualmente viria a dar o STF iria prevalecer, mas, citando a decisão do STF que reconheceu a união homoafetiva como união estável (ou, caso se prefira, entidade familiar com igualdade de direitos com a união estável heteroafetiva) afirmou que, por ser o casamento civil uma consequência da união estável, a decisão do STF na ADPF n.º 13:2 e na ADIn n.º 4277, de efeito vinculante e eficácia erga omnes (o que significa que deve ser seguida obrigatoriamente no país inteiro) gera, como consequência lógica, o reconhecimento do direito de casais homoafetivos ao casamento civil. Confesso ter ficado levemente ressentido com tal ministro por ele não ter enfrentado nenhum dos argumentos que apresentei na sustentação oral (nem aqueles constantes do recurso especial), pois, como visto acima, forneci bases puramente legalistas/civilistas para o reconhecimento do direito de casais homoafetivos terem acesso ao casamento civil: lacuna normativa caracterizadora de possibilidade jurídica do pedido e procedência do mesmo por conta do cabimento de interpretação extensiva ou analogia, ante a união homoafetiva formar uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido pelo regime jurídico do casamento civil consoante sua interpretação teleológica. Claro que tinha o ministro total liberdade para decidir em contrário se discordasse de algo que disse, mas deveria ele explicar o porquê de sua discordância. Mas, como juízes em geral não se sentem obrigados a enfrentar os argumentos jurídicos apresentados pelas partes quando contrários à tese que eles (juízes) defendem em suas decisões (!), não foi algo totalmente surpreendente, apenas decepcionante (embora valha citar que tal postura de não-enfrentamento dos argumentos apresentados ignora por completo o direito fundamental das partes ao contraditório material – direito de consideração dos argumentos apresentados mediante seu enfrentamento). Enfim…

A Ministra Isabel Galloti e o Ministro Antonio Carlos Ferreira afirmaram, em síntese, que se o STF decidiu que a expressão “o homem e a mulher”, constante do art. 226, §3º, da CF/88 e do art. 1.723 do CC/02 não impede o reconhecimento da união estável homoafetiva, com igualdade de razões dita expressão constante do art. 1.514 do CC/02 (dentre outros) não impediria o reconhecimento do casamento civil homoafetivo, dado que o Direito é um sistema lógico [que, portanto, não admite soluções distintas para situações análogas], entendimento que considero perfeito, consoante a lógica que expus em minha sustentação oral, supra explicitada.

Fiquei em pé, na tribuna, durante todos os quatro votos. Internamente, torcia pelos votos favoráveis e vibrava (reitero, internamente) quando os quatro ministros favoráveis declararam suas posições favoráveis ao casamento civil homoafetivo, balançando a cabeça afirmativamente quando com eles concordava. Balancei contrariamente apenas quando o Ministro Raul Araújo falava que o STJ não poderia decidir o tema, mas como na parte final de seu voto reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo por um fundamento válido, a ele também assenti positivamente. Algo extremamente agradável foi ver que, enquanto eu falava durante a sustentação oral, a representante do Ministério Público presente assentia positivamente durante minha fala, algo que eu, o casal e meu amigo presente (Dr. Gustavo Menezes) também notaram, a qual, após o julgamento, fez questão de correr para nos encontrar, me parabenizar e dizer que achava que o caso já estava decidido a nosso favor.

Contudo, voltando ao julgamento, o Ministro Marco Aurélio Buzzi, com algum constrangimento, disse que se nenhum dos ministros se opusesse, gostaria de pedir vistas dos autos, momento no qual se ouviu um abafado “aaahhhhhh” vindo daqueles/as que estavam assistindo ao julgamento. Indagado pelo Ministro Luis Felipe Salomão se não havia nada que pudessem fazer para ele votar naquele dia (até porque o resultado já estava, em tese, definido, a favor das recorrentes), o mesmo disse que não, donde se suspendeu o julgamento por dito pedido de vista dos autos.

Finda a sessão de julgamento, dirigi-me ao casal recorrente, que estava muito feliz e emocionado. Embora não parecesse, uma delas chorou ao longo de todo o julgamento ao ver as falas favoráveis ao direito delas se casarem. As duas também gostaram muito de minha sustentação oral e me elogiaram bastante, o que também fizeram outras pessoas presentes na sessão de julgamento que o assistiram – inclusive algumas repórteres, as quais pediram para eu lhes conceder entrevistas, o que fiz, sempre ressaltando que o advogado do caso era o Dr. Bernardo e que eu estava lá apenas para a sustentação oral (por uma questão de ética, não ia assumir, nem por omissão, todo o mérito pela ação, tanto que quando vi pessoas me parabenizando no facebook, fiz questão de ressaltar a atuação do Dr. Gustavo Bernardes e do Dr. Bernardo no caso – como disse algumas vezes, a sustentação oral é a cereja do bolo, momento no qual o advogado aparece mais e destaca os pontos principais das teses em julgamento, mas para ela ser possível, é preciso que alguém prepare o bolo, donde o Dr. Gustavo Bernardes merece todo o mérito por ter feito a ação, a apelação e o recurso especial, bem como o Dr. Bernardo merece reconhecimento por administrar o processo até o julgamento). O casal fez questão de comemorar comigo: fomos a uma lanchonete e conversamos bastante: rimos, comemoramos e conversamos. Era um momento de êxtase, já que o julgamento estava, em tese, definido pelos quatro dos cinco votos possíveis terem sido favoráveis a elas. Elas e suas amigas presentes me agradeceram bastante, o que me deixou muito feliz e satisfeito. Após, dormi na casa de um amigo (Edvaldo) e, na manhã seguinte, voltei a São Paulo.

Após minha volta a São Paulo no dia seguinte, entrei em contato com o Dr. Bernardo, advogado do casal, e disse que tinha a ideia de fazer um memorial a cada um dos ministros do STJ, colocando no papel minha sustentação oral civilista para dar bases legais ao quinto ministro e reforçar o entendimento dos outros quatro (pois, em tese, qualquer ministro pode mudar de opinião e, portanto, mudar seu voto até o final do julgamento), donde enviei a ele a minuta do memorial, que assinaríamos em conjunto. Todavia, não houve tempo para tanto, pois na terça-feira seguinte, dia 25/10/11, o STJ retomou o julgamento (e o site do tribunal só avisou isso na própria terça-feira) – se soubesse disso, teria enviado o memorial aos ministros diretamente, assinando sozinho apesar de não ter poderes para isso (mesmo porque o memorial não fica juntado no processo e, de qualquer forma, bastaria novo substabelecimento com petição convalidando a iniciativa, assinada por Bernardo, para convalidar tal ato).

Meu relato agora é oriundo de notícias que tive do casal recorrente e do Dr. Gustavo Menezes, presentes no julgamento, e por notícias da imprensa (como estava em São Paulo, aonde moro e trabalho, não tinha condições de ir a Brasília para assistir ao julgamento). O Ministro Marco Buzzi disse inicialmente que o pedido de vista se deu pela importância que o casamento civil tem para a humanidade, donde pediu apenas alguns dias a mais para pensar e que, pela importância do caso, o mesmo poderia ser afetado para a Segunda Seção para ser por ela decidido e não apenas pela 4ª Turma, mas apenas deixou isso no ar e proferiu voto favorável ao casamento civil homoafetivo, afirmando que não havia nenhum motivo jurídico (lógico-racional) que justificasse seu não-reconhecimento, na medida em que casais homoafetivos formam uma família [conjugal] e que o casamento civil constitui-se no vínculo jurídico a dar maior segurança aos vínculos e deveres conjugais. Contudo, algo que considero simplesmente surreal aconteceu neste momento: o Ministro Raul Araújo, aproveitando o ensejo da fala do Ministro Buzzi acerca da afetação do caso para a Segunda Seção, concordou com isto, por entender (mudando seu entendimento do dia 20/10/11), que somente o STF poderia decidir o tema e que, por isso, o STJ não teria competência para o julgamento. Digo surreal porque isto é uma questão preliminar, claramente já superada pelo julgamento pelo fato de o relator e todos que já tinham votado (inclusive o Ministro Araújo) terem ingressado no mérito da demanda – se um advogado tivesse sugerido algo similar, os Ministros certamente teriam dito que já teria se operado a preclusão, pois não feita a alegação no momento oportuno (antes do início do julgamento de mérito da demanda!) e quando um ministro que não votou acha que há uma questão preliminar a ser decidida antes do mérito, deve suscitar questão de ordem e levar o tema a votação, o que deveria ter sido feito antes do voto do relator ou, no máximo (com boa vontade ou benevolência interpretativa), após o voto do mesmo. Se isso tivesse ocorrido no dia 20/10/11, quando eu estava presente e em pé, na tribuna, após minha sustentação oral (ou então se estivesse presente neste dia), teria pedido a palavra (direito este garantido pela expressão “pela ordem”) e levantado tal questão: ora, a preclusão existe também para juízes, não só para advogados…

De qualquer forma, o tema foi a votação e, por 3×2, decidiu-se manter o julgamento na Turma, vencidos os Ministros Araújo e Buzzi no ponto para, no mérito, por 4×1, reconhecer-se o direito do casal (homoafetivo) recorrente se casar (vencido o Ministro Araújo, que mudou o voto para defender a incompetência do STJ para decidir o tema19).

Por seu resultado, dito julgamento foi realmente histórico. Reconheceu um direito civil básico a casais homoafetivos, o direito ao casamento civil, verdadeiro direito fundamental implícito (consoante reconhecido pela Suprema Corte dos EUA, sob o fundamento de que muitas pessoas acreditam que só atingirão a felicidade se puderem se casar, donde, destaco, tal direito é inerente à sua dignidade – dignidade da pessoa humana). A cidadania venceu mais uma importante batalha contra o totalitarismo daqueles que não se conformam com a felicidade alheia e que, portanto, são ontologicamente contrários ao direito de casais homoafetivos serem tratados com igualdade relativamente a casais heteroafetivos. É com muita satisfação que posso dizer que tive uma parcela de participação em mais um julgamento histórico.

1 Militante LGBT. Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – Bauru (2010). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2008). Bacharel em Direito pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie/SP (2005). Autor do Livro Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (1ª Edição, São Paulo: Ed. Método, 2008). Co-autor do Livro Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (organizado por Maria Berenice Dias; 1ª Edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011). Autor de diversos artigos jurídicos.

3 Cf. http://www.gadvs.com.br/?p=1041 (acesso em 06/11/11).

6 Meu livro é o Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (São Paulo: Ed. Método, 2008). Livro do qual sou co-autor com alguns artigos é o Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (coordenado por Maria Berenice Dias; São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011), além de ter artigos publicados pela Revista do Direito das Famílias e Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família acerca do tema da união estável e do casamento civil por casais homoafetivos, além de outros publicados em revistas online (como Jusnavegandi e Conteúdo Jurídico).

7 Infelizmente não localizei mais dito blog, pois agora, fazendo pesquisa similar, aparecem muitíssimas notícias relatando o julgamento do STJ, desde sua suspensão no dia 20/10/11, até seu resultado final, no dia 25/10/11.

8 Bernardo me enviou a petição de juntada de substabelecimento e o substabelecimento por e-mail (digitalizados), para protocolo dos mesmos no dia do julgamento, para ele depois enviar os originais por SEDEX 10 a Brasília.

9 Ocasião na qual representei a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo – AIESSP, presidida pelo Dr. Fernando Quaresma de Azevedo, que atualmente é o Presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOGLBT/SP).

10 Algumas notícias relataram argumentos pontuais de minha fala: cite-se, exemplificativamente: http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5425365-EI306,00-Turma+do+STJ+suspende+julgamento+sobre+casamento+gay.html e http://g3.pol.blog.br/ (ambas: acesso em 06/11/11)

11 Consoante jurisprudência pacífica do STJ, que exige enunciado normativo expresso que proíba determinado pedido para que ele seja considerado juridicamente impossível, entendimento este expressamente aplicado pelo Tribunal para reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva no REsp n.º 820.475/RJ e no REsp n.º 827.962/RS (entre outros, que não o citaram).

12Interpretação extensiva caso se considere as situações idênticas, por ambas formarem uma família conjugal, ou analogia caso se considere que a identidade de sexos em um caso e a diversidade de sexos em outro configuraria uma “diferença”, pois neste caso ter-se-á que concluir que ambas são idênticas no essencial, que é o fato de formarem uma família conjugal, objeto valorativamente protegido pelo casamento civil e pela união estável.

13 Cf. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. MANUAL DA HOMOAFETIVIDADE. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 1ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2008, pp. 196-211 (“2.4.1. O Amor Familiar como o Elemento formador da Família Contemporânea”).

14 Sobre o tema, vide a excelente lição de RIOS, Roger Raupp. A HOMOSSEXUALIDADE NO DIREITO, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, pp. 103-105, que explica a superação da opressora família hierárquico-patriarcal [na qual o homem mandava despoticamente na sociedade conjugal heteroafetiva], sua evolução para a família fusional[que se forma e se mantém apenas se houver afeto romântico na relação conjugal] e a chegada da família pós-moderna, do final do século XXI, na qual as relações se pautam muito mais na solidariedade e no afeto do que na mera função procriativa da família [família eudemonista, a que se forma e se mantém unicamente se isto trouxer felicidade aos seus membros].

15 Afinal, o art. 1.511 aduz que o casamento civil estabelece a comunhão plena de vida entre os cônjuges e o art. 1.723 afirma que a união estável é a união pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família, sendo que “constituir família” não significa “ter filhos”, “querer ter filhos” nem “poder ter filhos”, mas manter a citada comunhão plena de vida e interesses (capacidade procriativa não é requisito para reconhecimento de uma união conjugal como entidade familiar ante a não-proibição do casamento civil e da união estável a casais heteroafetivos estéreis, que não possuem capacidade procriativa – afinal, se ela fosse requisito do casamento civil e da união estável, casais heteroafetivos estéreis não teriam a si reconhecidos tais regimes jurídicos).

16 Cf. voto do Ministro Fux na ADPF n.º 132 e na ADIn n.º 4277, pp. 11-14.

17 Cf. voto do Ministro Ayres Britto na ADPF n.º 132 e na ADIn n.º 4277, pp. 46-47, ao afirmar que aqui o reino é da “igualdade pura e simples” entre casais homoafetivos e casais heteroafetivos, tanto em termos de casamento civil quanto da união estável, por afirmar que em nenhum momento há interdição a que casais homoafetivos consagrem sua união pelo casamento civil ou tenham-na reconhecida como união estável (segundo o Ministro, “tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização por pessoas do mesmo sexo”, o que, acrescente-se, caracteriza a lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia).

18 Afinal, ao atribuir ao ato taxado de “inexistente” a mesma pena do ato nulo, que é a destruição de todos os efeitos eventualmente produzidos com eficácia ex tunc (retroativa), a “teoria da inexistência” visa atribuir a ele a mesma pena do ato nulo, com a enorme diferença segunda a qual a nulidade supõe condições de validade expressamente erigidas pela legislação por enunciado normativo expresso ante a regra segundo a qual não há nulidade sem texto, que tem seu fundamento teleológico no art. 5º, inc. II, da CF/88, ao passo que as supostas “condições de existência” decorrem do puro subjetivismo do intérprete e não de texto expresso de lei (v.g., o que alguém considera como “essencial/da natureza” do casamento civil não é necessariamente o que outro assim considera), o que afronta inclusive os princípios da legalidade e da segurança jurídica, tratando-se de teoria que claramente visa burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto ao pretender atribuir ao ato taxado de inexistente a mesma pena do ato nulo a despeito de inexistir enunciado normativo que isto justifique.

19 Sobre notícias acerca do resultado final do julgamento, cite-se, exemplificativamente: http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5434672-EI7896,00-STJ+reconhece+casamento+gay+ao+julgar+uniao+de+gauchas.html (acesso em 06/11/11).