Em ofício enviado hoje, dia 26.08.2019, o GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, congratula o STJD – Superior Tribunal de Justiça Desportiva e a CBF – Confederação Brasileira de Futebol, pela orientação passada no início do Campeonato Brasileiro de Futebol, de 2019, para que árbitros(as) paralisem os jogos, para posterior punição dos clubes, para o fim de se interromperem cantos e gritos homofóbicos, o que ocorreu, pela primeira vez, no jogo de ontem, entre Vasco e São Paulo, em São Januário, após o árbitro constar os gritos de “time de veado” (sic).

Segue, abaixo, o inteiro teor do ofício:

 

São Paulo, 26 de agosto de 2019.

 

Para
Superior Tribunal de Justiça Desportiva – Procuradoria-Geral e Confederação Brasileira de Futebol – CBF
E-mail: <stjd@cbf.com.br>.

 

O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) apartidária, inscrita no CNPJ sob o n.º 17.309.463/0001-32, que tem como finalidades institucionais a promoção dos direitos da população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e o enfrentamento da lesbofobia, gayfobia, bifobia e transfobia, com sede na Rua da Abolição, n.º 167, São Paulo/SP, CEP 01319-030, entidade eleita como conselheira LGBT da cidade de São Paulo e de atuação em âmbito nacional, neste ato representada por seu Diretor-Presidente, Dr. Paulo Iotti, vem, respeitosamente, à presença de Vossas Senhorias, expor e requerer o quanto segue:

O GADvS vem parabenizar o Superior Tribunal de Justiça Desportiva e a Confederação Brasileira de Futebol pela recente orientação, adotada no início do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2019, que instruiu árbitros(as) de futebol a paralisarem jogos em que estejam ocorrendo cantos homofóbicos, até cessarem, sem prejuízo das punições desportivas cabíveis (como perda de pontos e multa).

Algo concretizado, pela primeira vez, no jogo Vasco x São Paulo, pela 16ª rodada do Campeonato, quando o árbitro constatou (segundo comentarista do Sportv) o grito “time de veado” (sic[1]), gritado pela torcida do Vasco contra o time do São Paulo[2]. Atitude perfeita, tendo em vista que isso implica em tradicional manifestação homofóbica contra homens gays, pela absurda negativa de sua masculinidade relativamente a homens heterossexuais (como se o fato de ser homossexual os tornasse “menos homens” do que heterossexuais).

Cabe lembrar que o GADvS requereu providências similares nos anos de 2014 e 2015, quando denunciou os gritos de “bicha” (sic) quando o goleiro adversário bate o tiro-de-meta, por intermédio das notícias de infração n.º 079/2014 e 286-A, 286-B e 286-C (de 2014), em tema também trabalhado no Inquérito n.º 245/2014, nas quais pleiteou precisamente a aplicação do art. 243-G do CBJD, que este E. STJD corretamente afirma incidir na espécie[3]. Embora referidas notícias de infração tenham sido rejeitadas também no mérito na época, entende o GADvS o caráter dinâmico do Direito e da interpretação jurídica, até porque, na época, a FIFA também deixou de aplicar multas na Copa do Mundo de Futebol de 2014, só passando a fazê-lo posteriormente, nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, tendo, inclusive, já punido a Seleção Brasileira de Futebol em algumas oportunidades, mediante aplicação de multa[4]. Mesma postura que passou a ser adotada pela CONMEBOL[5], vale ressaltar.

Lembre-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da ADO 26 e do MI 4733, reconheceu que a homofobia e a transfobia são espécies de racismo, e não por “analogia”, mas por se enquadrarem precisamente, por perfeita identidade conceitual, no conceito constitucional de racismo, na sua acepção político-social (racismo social). Inclusive, no citado Inquérito n.º 245/2014, a Procuradoria-Geral deste E. STJD argumentou que entendia “necessário” aguardar o resultado do referido julgamento, para poder passar a punir a homotransfobia no futebol, enquanto lei específica nesse sentido não fosse aprovada para tanto[6]. Isso não obstante a discordância neste ponto, pelo citado art. 243-G do CBJD merecer interpretação conforme a Constituição, relativamente ao art. 3º, IV, da CF/88, enquadrando-se a discriminação homofóbica como espécie de discriminação por motivo de sexo (ante tese de que a discriminação por orientação sexual é uma forma de discriminação do sexo da pessoa eleita para o relacionamento sexual e/ou afetivo, pois caso se relacionasse com pessoa do outro sexo, não sofreria a discriminação em questão)[7], como se defendeu na época.

Seja como for, a consideração da homotransfobia como espécie do gênero racismo afasta quaisquer dúvidas sobre a juridicidade de aplicação do referido dispositivo disciplinar no âmbito da Justiça Desportiva, pois da mesma forma que o racismo contra negros merece absoluto repúdio, já tradicional no futebol mundial, o racismo homotransfóbico merece a mesmíssima punição, sob pena de grave violação do princípio da igualdade, pela arbitrariedade da punição de determinadas opressões a grupos minoritários e não outras. Estádios de futebol não são territórios sem lei, onde discursos de ódio possam ser tolerados. Embora tradicionalmente se admitam condutas grosseiras e xingamentos proferidos na catarse coletiva da torcida de futebol em nosso país e outros lugares do mundo, caracteriza situação distinta a realização de discursos de ódio contra minorias e grupos vulneráveis historicamente estigmatizados. Como dito, isso já está bem consolidado na proteção da população negra nos estádios de futebol, donde é necessário que também se consolide em favor da população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos e demais pessoas não-heterossexuais e não-cisgêneras – as minoria sexuais e de gênero).

Como bem dito por comentarista do Sportv, Maurício Noriega[8], É preciso orientar o torcedor para uma nova realidade, um novo mundo, esperamos que seja um mundo melhor, donde o público-torcedor precisa ser educado para entender que condutas que eram “toleradas” no passado deixaram de sê-lo no mundo contemporâneo, que não aceita mais que preconceitos de quaisquer espécies sejam externalizados da forma que ainda o são nos estádios de futebol. Ao passo que, ante a tradicional distinção entre Direito e Moral, as normas jurídicas têm a peculiaridade da sanção com coercibilidade, de sorte que o descumprimento da proibição constitucional de discriminações de quaisquer espécies (CF, art. 3º, IV) devev gerar a punição dos clubes de futebol, em evidente responsabilidade objetiva pelos atos praticados por seus torcedores, inclusive pela inequívoca relação de consumo existente nos estádios de futebol, cf. art. 40 do Estatuto do Torcedor (e o Direito do Consumidor notoriamente traz a responsabilidade objetiva como regra geral de punição). Infelizmente, será necessária a punição efetiva de clubes de futebol (ou perspectiva de punição para atos tais) para que as respectivas torcidas deixem de praticar os cantos e gritos discriminatórios de cunho homotransfóbico, o que, seja como for, é a lógica do Direito e da norma jurídica, diferentemente da Moral e das normas morais.

Sem mais para o momento, vem o GADvS congratular e agradecer Vossas Senhorias, pela importante decisão de impor a repressão de atos de homofobia nos estádios de futebol, permanecendo ademais à disposição para quaisquer esclarecimentos (fornecimento de subsídios etc) que se tornem necessários.

 

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GADvS
Paulo Roberto iotti Vecchiatti
Diretor-Presidente do GADvS
OAB/SP n.º 242.668

 

[1] Embora usadas indistintamente, a palavra “veado” se refere ao animal tido como sensível e dócil, em desrespeitosa analogia que, a partir de padrões hegemônicos e simplórios de masculinidade, negam a masculinidade dos homens gays, ao passo que a palavra “viado” vem de antiga denominação (oriunda de equivocada “medicina forense”, puramente ideológica e assolada pelo heterossexismo, enquanto ideologia que prega a heteronormatividade/heterossexualidade compulsória), que afirmava homossexuais como “desviados/transviados” (sic), enquanto supostamente “desviantes da ‘norma’” heterossexual (o termo “straight”, usado em inglês para designar heterossexuais ainda hoje, incorre na mesma homofobia linguística). Como se vê, são termos de origem inequivocamente discriminatória da homossexualidade relativamente à heterossexualidade.

[2] Cf. <https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2019/08/25/vasco-x-sao-paulo-e-paralisado-por-arbitro-apos-gritos-de-time-de-veado.htm>. Acesso em 26.08.2019.

[3] Para um relato destes casos, vide a entrevista concedida pelo signatário à BBC Brasil, em 19.09.14: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/09/140919_homofobia_futebol_corinthians_rm_rb> (acesso em 28.07.2016). Ademais, para uma crítica à posição da Justiça Desportiva, que rejeitou as notícias de infração apresentadas contra tais gritos por ausência de previsão legal expressa – embora tal não tenha constado das singelas decisões negativas às Notícias de Infração 079/2014, 286-A, 286-B e 286-C, mas em fala do Procurador-Geral da Justiça Desportiva relatada no link a seguir, ela constou da decisão do Inquérito 245/2014 (da Justiça Desportiva), citado no corpo do texto desta petição, vide: <https://pauloriv71.wordpress.com/2015/04/10/audiencia-com-o-procurador-geral-da-justica-desportiva-sobre-denuncias-de-homotransfobia-no-futebol/> (acesso em 28.07.2016).

[4] Cf. <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/10/1923606-fifa-multa-cbf-por-gritos-de-bicha-e-times-sul-americanos-pagam-r-18-mi.shtml>. Acesso em 26.08.2019.

[5] Cf. <https://globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/conmebol-multa-cbf-por-gritos-de-bicha-na-estreia-do-brasil-na-copa-america.ghtml>. Aceso em 26.08.2019.

[6] Citada decisão do STJD (no Inquérito 245/2014) afirmou que “não se pode perder de vista a pendência de julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal do mandado de injunção nº 4.733 […] até que o tribunal guardião da constituição se manifeste em definitivo no julgamento do Mandado de Injunção acima referido, dando uma solução jurídica à matéria em comento, não se pode deixar de aplicar, aqui, o princípio constitucional da legalidade estrita […] [donde] no caso em análise não se pode fazer uma analise interpretativa ampla, de forma a se incluir uma conduta em um dispositivo que estabelece tipos fechados de infrações [desportivas] e que não prevê, de forma expressa, a prática que se pretende ver sancionada” (g.n – pp. 90 e 92-93). Para uma refutação de tal posição no âmbito da Justiça Desportiva, vide argumentação do signatário constante em sua manifestação constante do último link da nota anterior. Já para o histórico de denúncias realizadas sobre o tema, vide https://pauloriv71.wordpress.com/2014/07/02/gadvs-recorre-ao-procurador-geral-de-justica-desportiva-para-punicao-de-homofobia-no-futebol/ (acesso em 28.07.2016), onde se relata recurso ao Procurador-Geral da Justiça Desportiva (PGJD), posteriormente rejeitado nos termos da nota anterior, mas que traz link que leva à íntegra do histórico a tais denúncias – a saber: https://pauloriv71.wordpress.com/2014/04/06/gadvs-oficia-tjdsp-contra-homofobia-em-jogo-corinthians-x-sao-paulo/ (acesso em 28.07.2016), que traz a íntegra da primeira das denúncias em questão e do citado recurso ao PGJD.

[7] Sobre o fato de a discriminação por orientação sexual se enquadrar na discriminação por motivo de sexo, há forte doutrina que embasa esse entendimento. Com efeito, para Roger Raupp Rios, “De fato, a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterização de uma ou outra orientação sexual resulta da combinação dos sexos das pessoas envolvidas na relação. Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; todavia, se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, têm sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo. […] Isto porque é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou de outra orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não o juízo discriminatório diante de Pedro. Ou seja, o sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado” (RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2001, pp. 72-73). Para Maria Berenice Dias, “O tratamento diferenciado, pela inclinação a um ou a outro sexo, evidencia clara discriminação à própria pessoa, em função da identidade de seu sexo. Como a orientação sexual só é passive de distinção diante do sexo da pessoa escolhida, é direito que goza de proteção constitucional em face da vedação de discriminação por motivo de sexo. O gênero da pessoa eleita não pode gerar tratamento desigualitário com relação a quem escolhe, sob pena de se estar diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou diferente do sexo da pessoa escolhida” DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 5ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 90. Assim, se uma pessoa não é discriminada juridicamente por direcionar seu amor familiar a outra de sexo diverso, não pode sofrer represália do Direito pelo simples fato de amar uma pessoa do mesmo sexo (VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 3ª Ed., Bauru: Ed. Spessoto, 2019, Cap. 02, item 2).

[8] Cf. <https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2019/08/25/manifestacoes-homofobicas-em-sao-januario-irritam-comentaristas-do-sportv.htm>. Acesso em 26.08.2019. O comentário, constante da notícia, foi afirmado no programa ao vivo, logo após o jogo.