Ganhou a mídia recentemente o caso de Verônica Bolina, cidadã travesti que foi presa, acusada de agredir violentamente uma vizinha idosa e, na prisão, acusada de agredir gratuitamente um carcereiro, arrancando a orelha deste. Sobre o tema, o GADvS entende por bem tecer alguns comentários tendo em vista alguns mal entendidos que têm surgido nos comentários de alguns que não compreenderam a postura do Movimento LGBT na atenção dispensada a Verônica.

Em primeiro lugar, cabe lembrar que a primeira imagem que surgiu deste caso foi a de Verônica com o rosto totalmente inchado, sentada no chão, algemada, com o peito desnudo e com um cabelo extremamente curto, aparentando estar raspado, em uma notícia que relatava seu caso (sobre o cabelo, depois se esclareceu que ela usa peruca e a peruca encontrava-se apreendida na primeira delegacia à qual Verônica foi encaminhada). Com essa cena, o Movimento LGBT, ciente da notória transfobia institucional das polícias, que tratam travestis e mulheres transexuais como se homens fossem (e homens trans como se mulheres fossem), em completo desrespeito à sua identidade de gênero, ficou temeroso que Verônica pudesse ter sido agredida e mesmo torturada pela polícia.

Foi por isso que o Movimento LGBT se sensibilizou pelo caso de Verônica. Para garantir que ela seja respeitada em sua identidade de gênero feminina e apurar o motivo de ter ficado com seu rosto totalmente inchado. Afinal, o Estado tem o dever de garantir a integridade física daqueles sob sua custódia e, se presos(as) tentam agredir policiais e agentes públicos, cabe a estes imobilizá-los(as) e não agredi-los(as), agindo em legítima defesa e não punindo-os(as) com agressões.

O delegado responsável pelo caso afirmou que Verônica teria agredido gratuitamente o carcereiro que perdeu parte de sua orelha na “briga de rua” (palavras do delegado) que este teve com Verônica. Isso tem que ser investigado, reitere-se, à luz dos direitos fundamentais à ampla defesa, ao contraditório e do devido processo legal como um todo. Se confirmado, Verônica evidentemente deverá ser punida criminalmente pela agressão em questão, o mesmo valendo a confirmar-se a agressão que ela teria praticado contra a vizinha idosa. O que é inadmissível é que Verônica tenha sua identidade de gênero desrespeitada na prisão, o que é preciso ser destacado tanto pelo senso comum punitivista/revanchista de parte considerável da sociedade (que acredita que direitos humanos seriam apenas para “humanos direitos” e, consequentemente, acredita que Verônica teria “merecido” ser agredida na prisão pelos crimes que ela é acusada de ter cometido) quanto pelo senso comum que desrespeita travestis e transexuais em sua identidade de gênero (feminina, no caso de Verônica).

Entenda-se. Em nenhum momento invoca-se isenção de culpa nem muito menos se defende a impunidade de Verônica em relação aos crimes que é acusada de ter cometido. Contudo, lamentavelmente é necessário sempre reiterar que os direitos humanos existem para todos os seres humanos, inclusive os alegadamente criminosos (acusados de terem cometido crimes). O que se reivindica é o mesmo tratamento e dignidade, de nenhuma maneira humilhante ou degradante, a pessoas travestis e transexuais – e a presente situação cèrtamente não teria acontecido se se tratasse de uma pessoa cisgênera (que se identifica com o mesmo gênero que lhe foi atribuído no seu nascimento).

O que se reivindica é o respeito à dignidade de Verônica, de nenhuma maneira humilhante ou degradante, em sua identidade de gênero feminina – e parece seguro dizer que jamais teria havido a exposição de uma mulher de peito desnudo, sentada e algemada se ela não fosse travesti (ou transexual). A exposição de Verônica de peito desnudo e algemada foi claramente uma forma de deslegitimá-la em sua identidade de gênero feminina, no intuito nefasto de ridicularizá-la como se fosse “um homem com corpo de mulher” quando ela, como travesti, tem o direito de ser respeitada em sua feminilidade. É uma violência moral absurda tratar uma travesti ou mulher transexual no masculino ou um homem trans no feminino. Com isso o Movimento LGBT não pode compactuar.

Nesse ponto, cabe destacar que é irrelevante eventualmente não ter sido um policial ou agente do Estado a ter tirado a foto. Ao contrário do que inacreditavelmente disse o delegado a militantes LGBT, o Estado não só pode como deve impedir que jornalistas ou quem quer que seja tire fotos de presos(as), de pessoas sob a sua custódia. Isso viola o direito à imagem e honra do(a) preso(a) e não pode ser tolerado. A questão é que chegamos a um ponto tão absurdo na cobertura jornalística de prisões que temos jornalistas entrevistando presos(as) e expondo suas imagens cotidianamente, mesmo antes destes(as) terem acesso a um(a) advogado(a) para receber a devida orientação jurídica. Sem entrar nessa delicada questão neste momento, o que se quer apontar é que, se a liberdade de imprensa permite o acompanhamento jornalístico de prisões, o GADvS entende que é ilegal e inconstitucional expor a imagem de uma pessoa presa sem a autorização desta, ainda mais em uma posição humilhante e degradante como no caso de Verônica (peito desnudo, algemada e cabelo ralo, sem sua peruca). Logo, como o presidente do GADvS destacou ao delegado naquele momento, o Estado é responsável pelo dano moral sofrido por Verônica com a divulgação de sua imagem enquanto ela estava presa (sem prejuízo de dano moral por outras violações de direitos humanos de Verônica que venham a ser apuradas ao longo de seu processo penal e em outras instâncias investigatórias oficiais).

Alguns têm dito que tem havido muita preocupação com Verônica e nenhuma com a senhora que Verônica é acusada de agredir e mesmo com Beatriz, transexual amiga de Verônica que teria tentado apartar as agressões de Verônica contra a senhora em questão. Contudo, isso é um puro mal entendido. Verônica encontra-se sob a tutela do Estado e teve sua imagem e sua identidade de gênero desrespeitadas, como acima destacado. É contra isso que o Movimento LGBT protestou e protesta. Em nenhum momento se quer com isso menosprezar o sofrimento da idosa e do carcereiro em questão, não obstante quem tenha mínimo respeito ao devido processo legal deva ter um mínimo de cautela para não prejulgar Verônica antes que ela possa ser ouvida em juízo e serem produzidas as provas que sua defesa eventualmente vier a requerer (tudo à luz do contraditório, perante o Judiciário). Sobre Beatriz, ela não sofreu violência estatal, Verônica sim, independentemente do que ela tenha feito ou deixado de fazer, isso é grave por si só. Beatriz não teve sua imagem e sua identidade de gênero desrespeitadas pelo Estado, Verônica teve. Verônica foi vítima de violações de direitos humanos sob responsabilidade do Estado e isso deve ser apurado, sem que isso implique menosprezo ao sofrimento de outros(as) envolvidos no caso.

O GADvS esclarece que acompanhará todos os procedimentos instaurados para apuração de todo o ocorrido neste caso Verônica, esperando que tudo seja apurado de acordo com os rigores do devido processo legal – especialmente quanto às garantias fundamentais da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da presunção de boa-fé de tod@s @s envolvid@s, tudo isto de fundamental importância em um Estado Democrático de Direito.

Em suma, não se defende a impunidade de Verônica, apenas que ela tenha sua identidade de gênero e integridade física respeitadas e que o devido processo legal seja observado com rigor. É com esse intuito que o Movimento LGBT se solidarizou com ela, donde legítima esta atitude.