GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) apartidária, inscrita no CNPJ sob o n.º 17.309.463/0001-32, que tem como finalidades institucionais a promoção dos direitos da população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais) e o enfrentamento da homofobia e da transfobia, vem a público repudiar a pressão da chamada “Bancada Evangélica” do Congresso Nacional (na verdade, “Bancada Fundamentalista”, composta por religiosos fundamentalistas de credo cristão, portanto, abarcando também deputados católicos), que exigiu a substituição do termo “gênero” pelo termo “sexo” do Projeto de Lei n.º 292/2013, que tipifica o feminicídio (no §7º do art. 121 do Código Penal), para com isso tentar excluir de sua abrangência o feminicídio transfóbico, cometido contra mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino, sob pena de se opor à aprovação do projeto. Acolhida referida chantagem (não há como qualificá-la de outra forma), foi aprovado o projeto de lei, posteriormente sancionado pela Presidência da República.

Inicialmente, cabe destacar que o GADvS é amplamente favorável à criminalização específica do feminicídio. Lamentavelmente, já estamos começando a ver discursos simplórios contra tal lei, ora apontando suposta violação do princípio da igualdade, ora apontando caráter supostamente demagógico da mesma. Ou seja, o mesmíssimo discurso apresentado contra a Lei Maria da Penha, a qual, felizmente e corretamente, foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ante a obviedade segundo a qual a absurdamente maior incidência de crimes de violência doméstica contra a mulher justificar uma punição (e atenção) mais rigorosa a ela relativamente à violência doméstica por vezes praticada contra o homem. [1]

Pelo mesmo raciocínio, considerando que ainda hoje muitas mulheres são agredidas, estupradas e mesmo mortas quando elas “ousam” agir de uma forma que não é considerada (pelo absurdo machismo social) como postura de “mulher que se dá ao respeito” (SIC), é bem-vinda a criminalização do feminicídio, sobretudo aqui falando de um país no qual, em 2013, o número de estupros superou o de homicídios dolosos e que ocupa a vergonhosa sétima posição mundial no ranking entre 84 nações no que tocam os crimes de feminicídio, com uma taxa de 4,4 homicídios a cada 100 mil mulheres [2]. Evidentemente, o GADvS não considera que a criminalização isoladamente considerada seja uma panaceia para todos os males do sistema social machista que oprime as mulheres até hoje, mas entende que ela é uma das ações necessárias (a curto prazo), que deve ser acompanhada de políticas públicas mais amplas para, a médio e longo prazo(s), diminuirmos a opressão da mulher na sociedade.

Contudo, e aqui entra o objeto principal desta nota, merece completo REPÚDIO a transfobia e transmisoginia de parte de nossos parlamentares, que se mostram insensíveis à violência sofrida por mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino em nossa sociedade, que são agredidas em razão de sua identidade de gênero feminina, ou seja, por “ousarem” se identificar e vivenciar um gênero dissonante daquele que a sociedade cissexista, heterossexista e machista [3] impõe às pessoas em razão de uma mera verificação genital quando nascemos – genital que não define gênero de ninguém, já que o gênero só pode ser definido pelo nosso aparato mental; ou seja, a identidade de gênero é de autorreconhecimento soberano, apenas a pessoa é capaz de afirmar com bastante propriedade e legitimidade qual é o seu gênero, conforme ilustram os Princípios de Yogyakarta, que dizem respeito à interpretação (concretização) da legislação internacional de pessoas LGBT.

Ignoram que muitas agressões, estupros e assassinatos de mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino decorrem da transfobia que não admite que elas vivenciem o gênero feminino, tendo por isso não só seus direitos cerceados, sua integridade física ameaçada como muitas vezes são de fato assassinadas, fazendo do Brasil o país campeão mundial de assassinato de mulheres transexuais e travestis, conforme consta em relatório do grupo Transgender Europe [4].

De qualquer forma, não obstante essa nefasta tentativa de excluir as mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino do crime de feminicídio, o GADvS entende que, pela teoria objetiva da interpretação (pela qual “a lei é mais sábia que o legislador” e  que considera que a “vontade do legislador” não positivada no texto normativo não pode ser determinante na interpretação respectiva), a qual é aparentemente majoritária em nossa doutrina jurídica [5], o termo “sexo” pode ser interpretado no sentido de “corpo sexuado” (Berenice Bento), na medida em que, consoante nos ensina Judith Butler, também a categorização das pessoas em “dois sexos” é uma construção social tão cultural e artificial quanto a categorização das pessoas em “dois gêneros”. Como sabem os estudiosos, no passado entendia-se que a humanidade seria formada por um “único sexo”, o “masculino”, as mulheres sendo uma espécie de “homens incompletos”, como já nos apontava Thomas Laqueur. Isso mostra como também a noção de “sexo” não está necessariamente vinculada à “natureza” (como entendia a “primeira onda” do feminismo, ao dividir “sexo” enquanto inato e “gênero” enquanto construção social) e que, portanto, pode-se entender que as pessoas transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino são, nesse sentido, pessoas do “sexo feminino”, entendido o termo “sexo” enquanto construção social. Ou seja, falar que pessoas do “sexo masculino” devem ter atitudes/condutas diferentes de pessoas de “sexo feminino” é, também, uma ideologia de gênero (ao contrário daqueles que criticam, como “ideologias de gênero”, quaisquer defesas de igual respeito e consideração e não-discriminação a pessoas transexuais, cujas identidades de gênero não coincidem com o binarismo de gêneros socialmente imposto).

Entenda-se bem, não se está dizendo que não há diferenças anatômicas entre os diferentes seres humanos dotados de diferentes genitais e conformações corporais. O que se está dizendo é que essas diferenças não devem ser consideradas “essenciais” na definição dos papéis sociais de “homens” e “mulheres”, segundo a ótica binária – e especialmente na vivência das pessoas enquanto “pessoas masculinas” ou “femininas”, tanto que hoje vemos cada vez mais pessoas se identificarem como “não binárias”, ou seja, como não representadas pelo binarismo de gêneros (masculino/feminino), uma vez que encontram espaço para assumirem a legitimidade de suas identidades em um mundo que não pode mais se limitar pela mera oposição homem/mulher.

Portanto, crimes cometidos contra pessoas do “sexo” feminino são cometidas em razão daquilo que o machismo social espera ou exige de pessoas do “gênero feminino”, logo, considerando que “sexo” é uma construção social diretamente relacionada a “gênero”, então o crime de feminicídio deve abarcar o feminicídio transfóbico, cometido contra mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino.

Dessa forma, o GADvS vem a público REPUDIAR a tentativa transfóbica de se excluir mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que podem se identificar com o gênero feminino do crime de feminicídio por parte de nossos parlamentares, bem como vem DESTACAR que o termo “sexo”, entendido enquanto “corpo sexuado” e como construção social, é apto a abarcar o crime de feminicídio transfóbico, quando essa população for vítima de assassinato motivado em função da intolerância de gênero, que atribui que pessoas nascidas com um genital identificado como masculino não podem em hipótese alguma vivenciarem uma identidade de gênero feminina.

 

GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual *
pp. Paulo Iotti (diretor-presidente)
OAB/SP 242.668

 

[1] Cf. STF, ADC 19 [Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 19]. No mesmo sentido, defendendo a constitucionalidade da Lei Maria da Penha antes do referido julgamento, vide: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da Constitucionalidade e da Conveniência da Lei Maria da Penha. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set. 2008. Disponivel em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.21067&seo=1 Acesso em: 18 mar. 2015

[2] Cf. http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/11/numero-de-estupros-no-pais-supera-o-de-homicidios-dolosos-diz-estudo.html

[3] Cissexista é o sistema de opressão em que se legitimam apenas as identidades de gênero cisgêneras, ou seja, as pessoas que se identificam com o mesmo gênero que lhes foi designado no nascimento em razão de sua genitália. Heterossexista é o sistema de opressão em que se legitima apenas a heterossexualidade enquanto orientação sexual “digna/válida” de ser vivida.

[4] Cf.  http://tgeu.org/press-release-transgender-europes-trans-murder-monitoring-project-unveils-interactive-map-of-more-than-1500-reported-murders-of-trans-people-since-january-2008-1/

[5] Cf. as lições de Carlos Maximiliano, Geraldo Ataliba e Luís Roberto Barroso, para ficar apenas nestes ilustres autores da academia jurídica.

Não se pode deixar de agradecer a Daniela Andrade, militante transfeminista que felizmente integra os quadros do GADvS, cujos conhecimentos sobre gênero e sexualidade enriqueceram sobremaneira a presente nota.