GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual enviou na última sexta-feira, dia 20.02.15, notificação extrajudicial ao jornal “O Estado de São Paulo”, solicitando direito de resposta e retificação em razão de artigo publicado por Ives Gandra da Silva Martins, em 26.01.15, chamado “O Princípio da Igualdade” (disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-principio-da-igualdade-imp-,1624804), ter difundido informações incorretas sobre a pretensão do Movimento LGBT em prol da criminalização da homofobia e da transfobia.

Ressalte-se que o GADvS enviou e-mails ao “Estadão”, solicitando dito direito de resposta e retificação, mas não obteve resposta nenhuma, razão pela qual enviou referida notificação extrajudicial para fins de comprovação de “interesse de agir” para fins de propositura de futura ação judicial caso não tenha atendido seu pleito (o “interesse de agir” é uma das “condições da ação”, um dos requisitos que se deve cumprir para propor uma ação judicial: além da utilidade do provimento judicial, que evidentemente existe na publicação dos esclarecimentos em questão, é preciso provar que é necessária a tutela judicial, pela negativa do réu em cumpri-la espontaneamente, daí o envio da notificação).

Na notificação, após destacar que o Supremo Tribunal Federal afirmou ser o direito de resposta uma “norma de eficácia plena” quando revogou a Lei de Imprensa na ADPF 130 (o que significa que não precisa de uma lei regulamentadora para que possa ser exigido judicialmente o seu cumprimento), o GADvS esclarece que “A retificação justifica-se por o autor do artigo faltar com a verdade ao caracterizar a proposta de criminalização da homofobia e da transfobia (homotransfobia). A resposta, por sua vez, é devida por o jornal ter veiculado apenas o ponto de vista contrário à criminalização da homotransfobia, o que depõe contra o pluralismo, fundamento da República e do bom jornalismo”. Assim, após transcrever trechos do texto de Ives Gandra, no sentido de que estaria o Movimento LGBT querendo criminalizar “qualquer observação ou piada” como crime “inafiançável”, o GADvS esclarece que a única coisa que a criminalização da homotransfobia visa é garantir a LGBTs a mesma proteção que se garante a religiosos e negros (“Não pode contra negros e religiosos, não pode contra LGBTs“), ao passo que Diferentemente do que diz o autor do artigo, porém, as piadas contra crenças religiosas são criminalizadas, na medida em que induzam ou incitem a discriminação (“caput” do art. 20 da Lei nº 7.716/1989). É essa a proteção que o PLC 122/2006 (arquivado) pretendia estender à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”.

Afirmou o GADvS, ainda, que “Ao reduzir a causa da criminalização da homotransfobia à punição de “qualquer observação sobre gays” ou a meras “piadas”, o autor do artigo faz pouco das centenas de LGBT que são assassinadas todos os anos no Brasil e que a proposta de alteração legislativa pretende combater. Daí a importância de publicar não apenas uma retificação das incorreções ditas por Ives Gandra Martins, mas também uma resposta que explique no que consiste a criminalização da homotransfobia”.

Esperemos agora a resposta do “Estadão”, no prazo de dez dias úteis do recebimento da notificação (prazo mais que razoável para analisá-la e respondê-la). Caso não haja a publicação, o GADvS ingressará na Justiça pleiteando a concessão do direito de resposta e retificação em questão.

 

Eis a íntegra do texto que o GADvS requereu seja publicado pelo “Estadão”:

 

Em 26.01.2015, dia em que foi noticiada a tortura e assassinato da travesti Piu, passista da escola de samba carioca Beija-Flor, o jornal O Estado de S. Paulo publicou artigo no qual o jurista Ives Gandra Martins diz que a criminalização da homofobia consiste em tornar qualquer observação ou piada sobre gays crime mais grave do que o homicídio. O jurista afirma ainda que os defensores da criminalização da homofobia agem irracionalmente, pois, por um lado, consideram legítimo atacar cristãos, mas pretendem punir quem faz observações sobre gays.

Primeiramente, cabe notar que não se defende apenas a criminalização da discriminação contra gays, mas também contra lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais – e mesmo contra heterossexuais, que também conformam uma orientação sexual.

Em segundo lugar, lembramos que a criminalização da homofobia e da transfobia (homotransfobia) não é reivindicada somente pelos sujeitos interessados (LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), mas também por cisgêneros e heterossexuais que entendem a violência contra as LGBT como uma ofensa contra a diferença ínsita à natureza humana e, portanto, contra si mesmos.

Além disso, não se visa punir só a homofobia e a transfobia, mas a discriminação “por orientação sexual e por identidade de gênero”, logo, se heterossexuais cisgêneros forem discriminados, isso será crime em iguais condições ao crime de homotransfobia (obs: cisgêneros são os que se identificam com o gênero socialmente atribuído a pessoas de seu sexo).

A mais grave desinformação do artigo do jurista, no entanto, diz respeito à abrangência da reivindicação. Primeiro, não se defende a criminalização de observações e piadas, mas de discursos de ódio e ofensas à coletividade LGBT em geral (como a equiparação à pedofilia, por exemplo). Desejamos apenas que a homotransfobia seja um crime tão grave quanto atualmente é discriminar por motivo de religião (art. 1º da Lei 7.716/1989, “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”). Será que ele considera desproporcional a punição atual à discriminação religiosa?

“Não pode contra negros e religiosos, não pode contra LGBT”: essa a regra de ouro que se pleiteia quando se luta pela criminalização da homofobia e da transfobia.

Se o Estado deve proteger o direito das pessoas viverem suas vidas como quiserem, desde que não prejudiquem terceiros, prejuízo esse inexistente no modo de ser das pessoas LGBT, quem está querendo “privilégios”: os que pleiteiam igual proteção penal (LGBT) ou aqueles que não querem que a proteção penal que possuem seja a outros estendida?

Enfim, lamentamos profundamente o jurista ter aproveitado a tragédia do assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo para construir uma falsa oposição entre cristãos e LGBT. “Falsa” porque a maioria das LGBT brasileiras é cristã, muitas delas inclusive membros de igrejas cristãs inclusivas, que as aceitam plenamente. Além disso, cristãos comungam um passado de perseguição com as LGBT, sendo uns e outras interessados no fim da intolerância. Portanto, a oposição é falsa porque ambos os grupos sabem que nenhuma diferença – religiosa, de orientação sexual ou de identidade de gênero – justifica desprezar a humanidade que nos torna profundamente iguais.