*Por Daniel Mendes Ortolani

Quem tem a oportunidade de trabalhar com mudança de nome se surpreende diariamente com os efeitos negativos que um nome inadequado gera sobre a pessoa. Alguém pode erroneamente pensar que um nome inadequado é uma característica desimportante, e que a mudança de nome é um luxo supérfluo, mas quem assim pensa não conhece nem uma fração do sofrimento e o impacto que a inadequação do nome pode causar.

Pessoas largam seus estudos em razão da vergonha de terem seus nomes expostos em chamadas e provas orais. Frequentemente a frustração com o nome pode levar o indivíduo a quadros depressivos, e não raro, é fator importante em tratamentos psicológicos e psiquiátricos – cada vez mais e mais laudos e declarações psicológicos são juntados em ações de mudança de nome, como forma de prova do impacto negativo do nome na vida da pessoa.

Mas se para o bem e para o mal, o nome ganha tratamento jurídico especial em nosso país, sendo em regra, imutável, é razoável que existam situações em que a mudança seja possível, dada a própria natureza do nome como elemento integrante e expressão da personalidade, e de forma a proteger a pessoa dos efeitos nocivos do nome inadequado. Por essa razão a mudança de nome é possível nos casos de nomes que expõe a pessoa ao ridículo; erro de grafia; homonomia de alguém que lhe prejudica o crédito; para a inclusão de sobrenome de família omitido; como expressão da liberdade de escolha, durante o ano em que o indivíduo alcança a maioridade;  no sentido de fazer valer o nome de uso, nos casos de inclusão de apelidos notórios; e nos casos de adequação de sexo, ou seja, nos casos de transexualidade.

No caso de transexuais, o sofrimento gerado pela inadequação do nome e do gênero no registro de nascimento e demais documentos da vida civil ganha proporções ainda maiores. Entretanto, para se entender melhor essa situação, é preciso entender alguns conceitos com os quais nem todos estão familiarizados: orientação sexual e identidade de gênero.

Em termos leigos, a orientação sexual é a expressão individual da sexualidade, que indica qual o objeto da atração sexual e afetiva do indivíduo. Assim, quando falamos de orientação sexual, falamos normalmente em orientações heterossexuais e homossexuais, e, por conseguinte, em relações heteroafetivas e homoafetivas. A identidade de gênero, por sua vez, é a identificação do indivíduo com um sexo; a pessoa se sente homem ou mulher, independentemente do sexo biológico que lhe foi designado ao nascer.

Dessa forma, por exemplo, um indivíduo pode ter sexo biológico de homem, se identificar como homem, e ter orientação heterossexual; mas pode, ainda, por exemplo, ter sexo biológico homem, se identificar como homem e ter orientação homossexual. Pode ser que um indivíduo seja biologicamente homem, se identifique como mulher, e tenha orientação heterossexual; ou ser mulher, ter identificação como homem, e ter orientação bissexual. As combinações são imensas.

Existem, por exemplo, casos de pessoas que nasceram homens – ou seja, apresentaram sexo biológico masculino – mas apresentam identidade de mulheres, e são homossexuais. Casos semelhantes foram amplamente veiculados recentemente na televisão por documentários que retratavam a vida de homens, que se submeteram à cirurgia de adequação de sexo, para terem relacionamentos com mulheres.

As variações são muitas, e as matizes tanto de orientação sexual quanto de identidade de gênero são diversas. As variações da orientação sexual vão desde o indivíduo heterossexual até o homossexual, passando por configurações amplamente variáveis de bissexualidade, e até pela assexualidade. Em contrapartida, quanto à identidade de gênero, um indivíduo vai desde o masculino até o feminino, aparecendo inclusive, hoje em dia, o fenômeno do chamado “genderqueer”, indivíduo que não se identifica com nenhum dos sexos, ou com ambos, seja, em alguns casos, com uma identificação andrógina, seja transitando entre os gêneros alternadamente.

Se por um lado o Direito ainda não se dedicou ao estudo consistente da regulação civil da vida os indivíduos “genderqueers”, que é um fenômeno debatido apenas muito recentemente, cada vez mais, em contrapartida, os juristas têm estudado e refletido sobre a situação do transexual, em especial sobre o direito à cirurgia de adequação de sexo e à adequação documental civil à identidade sexual.

Não é de hoje que nossos tribunais têm autorizado a mudança de nome quando a pessoa se submete à cirurgia de adequação de sexo, ou de resdesignação sexual (conhecida popularmente como cirurgia de mudança de sexo). Porém, até pouco tempo, os juristas ensinavam que apenas a mudança de nome deveria ser autorizada, sem que fosse autorizada a alteração do gênero na documentação.

Então, por exemplo, uma pessoa nascida mulher que fizesse uma cirurgia de adequação ao sexo masculino, poderia, por exemplo, mudar seu nome de “Ana” para “Paulo”, mas continuava a ser identificada como de “sexo feminino” na certidão de nascimento e na cédula de identidade. Na melhor das hipóteses, a documentação indicava a expressão “transexual” ao invés de “sexo masculino” ou “feminino”.

Entretanto, as decisões dos tribunais estão consistentemente mudando.

Já em 2009, o Superior Tribunal de Justiça autorizou a alteração do nome e do gênero em uma ação de retificação de registro civil. Naquele caso, uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino fez uma cirurgia de adequação de sexo para o feminino, e a Justiça autorizou não só a mudança de nome, mas também a mudança de gênero – ficando, portanto, o gênero identificado como de “sexo feminino” na certidão de nascimento, e ato contínuo, na cédula de identidade e demais documentos da vida civil.

Em 2012, algumas decisões de primeira e segunda instância autorizaram a mudança do nome antes mesmo da realização cirurgia de adequação de sexo. Importante notar que os advogados e juízes que trabalharam nesses casos reservaram a mudança de gênero na documentação para só após a cirurgia.

Como os tribunais superiores vão se posicionar a respeito da retificação documental do nome e gênero prévia à realização da cirurgia ainda é uma incógnita, ainda mais nos casos em que o transexual tem de fato uma identificação de gênero diversa da biológica mas se reserva ao direito de não realizar o procedimento cirúrgico (que, no final das contas, é um procedimento médico com todos os riscos hospitalares típicos de qualquer cirurgia).

Com relação à proteção dos “genderqueers”, só tempo dirá. Mas é identificável uma tendência social (não necessariamente já identificável juridicamente) cada vez mais inclusiva tanto para a situação dos transexuais, quanto para a dos “genderqueers”, e historicamente o Direito acompanha a sociedade, ainda que com defasagem de tempo.

* Dr. Daniel Mendes Ortolani é advogado atuante nos ramos do Direito Civil, Empresarial e Tributário, autor de diversos artigos, e formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E-mail: daniel@ortolani.com.br .

Fonte: União Homoafetiva