06.outubro.2011 / Artigo

                                  RICARDO ARCOVERDE CREDIE: O BEM DE FAMÍLIA E A UNIÃO HOMOAFETIVA

(RICARDO ARCOVERDE CREDIE, Mestre em Direito, Desembargador do TJSP, aposentado, autor do livro “Bem de Família – Teoria e Prática”, Saraiva, 2010) 

Escrevi, já faz algum tempo, que o convívio homossexual não determinava a imunidade à apreensão judicial que a Lei 8.009/90 dispensou à entidade familiar.

Assim em razão de a Constituição Federal não definir a união estável senão “entre o homem e a mulher” (§ 3º do art. 226), e o Código Civil contemplar o casamento ou a união estável sempre na polaridade masculino-feminina, conforme os seus arts. 1.514 e 1.723: tinham-se então as uniões de pessoas do mesmo sexo como meras sociedades de fato e, em conseqüência, eram baldadas as expectativas de qualquer um dos seus protagonistas em obter o benefício da não-excussão da casa de morada.

Em poucos anos, no entanto, houve significativos avanços.

Se antes a família era tradicionalmente pautada pelas idéias de justas núpcias, bens e pátrio poder, em razão de transformações da sociedade este conceito vem agora abrindo espaço para novas fórmulas de estrutura, nos quais a preponderância de valores mais justos, como afetividade, igualdade, dignidade humana, pessoalidade, busca da felicidade, fazem diminuir a distância entre a realidade social e o direito posto, a alcançar-se aí uma interpretação que chegou mais às raízes dos princípios constitucionais.

O influxo jurisprudencial, que não poucas vezes baliza a evolução do Direito de Família e tem se antecedido no Brasil ao processo legislativo, alterou esta maneira de dizê-la simples convivência, para agora denominá-la união homoafetiva e erguê-la ao mesmo patamar jurídico da união estável heteroafetiva, como aliás já vem sendo denominada, em diferenciação .

Este desenvolvimento iniciou-se com mais destaque na doutrina e jurisprudência sul-riograndenses, se bem que em outros estados juristas e tribunais convergissem para o mesmo destino, em tempo no qual ainda se falava em união entre homossexuais.

O Superior Tribunal de Justiça também já avançava para a solução, e no mesmo rumo a própria Corte Suprema.

Coube por fim ao Supremo Tribunal Federal, em 5 de maio de 2011, quando julgou emsimultaneus processus duas ações diretas de inconstitucionalidade, proferir acórdão histórico, no qual se entendeu que tanto a Constituição quando o Código Civil, naqueles seus artigos relacionados com o tema, não mais deverão ser interpretados discriminatoriamente, como se vedadas as uniões entre pessoas do mesmo sexo, a prevalecerem sobre aquelas normas os princípios fundamentais da igualdade e dignidade da pessoa humana, contidos nos arts. 1º, inciso III, e 5º, caput, e inciso I, da nossa Carta Magna.

Os votos dos Ministros César Peluso, Gilmar Mendes e Ricardo Levandowski alertam que o trabalho apenas se inicia, diante das tantas e diversificadas hipóteses que a questão alcança.

Embora possam ser atribuídos de imediato direitos iguais aos da união estável masculino-feminina àquela de casal do mesmo sexo (como, p. ex., alimentos, sucessão, previdência social, planos de saúde, imposto de renda), há outros que – dependentes de leis a se editarem, ou ainda de tutelas jurisdicionais que se venham a suscitar – poderão não ser exercidos em futuro próximo. Entre estes, o casamento, inclusive a forma de conversão da união estável; a filiação; a fertilização; a adoção; e as situações registrais daí resultantes.
É de perguntar-se: entre os direitos que desde logo se exercitam na união estável homoafetiva (e este é o tema do que aqui se escreve), estará elencado o que decorre dobem de família?

Há de se responder que sim.

Conceitualmente, bem de família é a imunidade a quaisquer atos de apreensão judicial, entre eles a penhora, que venham a recair sobre imóvel, urbano ou rural, habitado por um grupo ou entidade familiar.

Não resta dúvida que o conceito abrangente de entidade familiar tem evoluído muito mais que aqueles literais “…cônjuges… …pais e filhos…” por primeiro enunciados no art. 1º da Lei no. 8.009, de 29 de março de 1990. De algum tempo para cá – e é indiscutível que o contributo, nesta mudança, advém do lavor pretoriano – qualquer que seja a família, a constituída pelo casamento, a resultante da união estável, a ligada por simples parentesco, a decorrente de relação concubinária e até mesmo a de residente singular, remanescente ou não dos demais agrupamentos, o seu lar estará protegido da constrição judicial.

A entidade familiar, quando ainda não era integrada pela união estável homoafetiva, já estava protegida pela Lei no. 8.009, de 1990.

Resultou daquele julgamento tornar-se a união estável homoafetiva espécie do gêneroentidade familiar, agora estendidos a esta última, pelo Supremo Tribunal Federal, os mesmos direitos que os casais heterossexuais têm nas suas uniões estáveis.

Incluiu-se, desta maneira, a nova modalidade, na categoria mais ampla de entidade familiar.

Diante da inserção da união estável homoafetiva na moldura estabelecida pela Lei no. 8009, que já privilegiava genericamente a entidade familiar, desde já e sem qualquer necessidade de declaração judicial ou legislativa, estendem-se àquela os benefícios da imunidade, relativa, que decorre do bem de família.

Desde que se comprove que pessoas de mesmo sexo habitam imóvel residencial, comum ou de um só dos parceiros, com ânimo definitivo, estará esse prédio excluído de quaisquer atos de constrição judicial, ressalvadas as exceções legais à regra geral da inexcutibilidade, constantes dos incisos I a VII do art. 3º da mesma Lei.

Acrescente-se mais: a decisão da Corte Suprema foi transmitida, pelo seu Presidente, a todos os tribunais e juízos do Brasil. Corolário do efeito vinculante assim atribuído é oprincípio da proibição do retrocesso social, que veda decisões que desconsiderem a existência, ora declarada, da união estável homoafetiva que, nas palavras abalizadas de MARIA BERENICE DIAS é “sinônimo perfeito de família” (Tribuna do Direito, setembro de 2011, p. 6 do informe do IBDFAM).

Some-se ainda a circunstância de as normas da Lei no. 8.009 merecerem e receberem sempre exegese teleológica ou finalística, ou seja, são e serão necessariamente interpretadas no escopo constitucional de proteção da família, sem que se distinga agora a maneira pela qual esse grupo esteja estruturado.

Finalizando: está resguardada de imediato a união estável homoafetiva sob o pálio dobem de família.

Fonte: site da APAMAGIS- Associação Paulista de Magistrados